COACH LITERÁRIO

O ORIENTADOR LITERÁRIO é um profissional que acompanha, ensina e participa de todo processo de criação de um livro. Um profissional técnico, especializado em criação, um professor de escrita e um parceiro, ao mesmo tempo. Experimente, é terapêutico e libertador. Perpetue as histórias que só você tem para contar.

MOLECAGEM


 

- Bom dia, “Seu” Tatá! Saudou o porteiro.

- Bom dia, campeão!

        É assim que o Sr. Otávio é conhecido e cumprimentado por todos naquele quarteirão de Copacabana. Seu Tatá é conhecido por todos os comerciantes legais e ilegais daquela região. Depois da morte da esposa, a manifestação de solidariedade de todos o deixou ainda mais próximo e grato a todas aquelas pessoas que o adotaram. Graças ao apoio que recebeu, em vez de se trancar em casa, passou a circular pela região só para conversar com o pessoal. Após o luto, recuperou-se de tal forma que poucos poderiam imaginar.

 Não tinha filhos, morava sozinho e tinha uma aposentadoria que lhe bastava. Mas, o que mais colaborou para a recuperação do seu Tatá, depois da viuvez, foi o reencontro com os amigos da juventude que ainda estavam vivos, depois que a filha do vizinho o convenceu a comprar um notebook e abriu uma conta para ele em todas as mídias sociais.

Ele se deslumbrou. Passava horas e horas procurando antigos amigos, namoradas, conhecidos, recortes de jornais de época, vídeos antigos e tudo mais que fazia parte de sua memória afetiva. Em algumas tardes, voltava no tempo.

Segundo seu médico, ele vinha apresentando melhoras em todos os índices e marcadores que os exames podem mostrar. Seu estado de espírito parecia ter sido mergulhado na fonte da juventude. Para completar o quadro, encontrou 5 amigos que ainda estavam vivos, pelo facebook e, pasmem, que ainda moravam em Copacabana.

Passaram a se encontrar todos os dias na praça do Bairro Peixoto, onde se divertiam e partilhavam memórias e vivências.

Seu Tatá parecia ter voltado à juventude. Até o dia em que acordou com o barulho de máquinas bem embaixo de sua janela. Era no terreno ao lado, que estava sendo preparado para virar um galpão para estacionamento.

Ele aguentou o barulho por vários dias, apesar daquilo o irritar profundamente. 

Mas, fazer o quê? Pelo menos durava só até umas 5 horas da tarde.

Até o dia, ou melhor a noite, em que a obra do piso cimentado estava no final e três máquinas semelhantes a grandes enceradoras domésticas antigas, do seu tempo, invadiram a noite com seus barulhos não muito altos, mas extremamente irritantes.

Quando Seu Tatá acordou de um cochilo, às 8 horas da noite, as máquinas ainda estavam trabalhando e aquilo o irritou ainda mais. Com certeza, aqueles infelizes iriam até às 10 da noite com aquele barulho. Se não parassem ele ligaria para a polícia, afinal é para isso que existe a Lei do silêncio, pelo menos na época dele existia e as pessoas e as obras respeitavam certas convenções de boa vizinhança.

Às 10:30 da noite não havia nem sinal de que as máquinas iriam parar. À essa altura, Seu Tatá já estava bastante irritado e sentia-se enraivecido como há tanto tempo que nem se lembrava mais. Pegou o telefone para ligar para a polícia e pensou que de nada adiantaria. Iria demorar tanto até a polícia chegar, se chegasse, que os operários já teriam parado e de nada teria adiantado sua irritação e o chamado telefônico.

Mas, ele precisava fazer alguma coisa.

Foi até a geladeira se lembrando de como era bom ter sido um moleque bicho solto...Só de pensar no que iria fazer sua pressão arterial diminuiu, sua glicose baixou e quase teve uma ereção.

Pegou uma caixa de ovos, apagou as luzes do apartamento, fechou as cortinas, mas não as janelas. E começou a jogar os ovos nos três homens que operavam as máquinas e em mais um que fiscalizava. Jogava e se escondia, rindo sem parar. Cada ovo jogado era uma sessão de risadas. E o velho tinha uma excelente mira...

O que lhe causou uma crise de riso impagável.

Não precisou mais do que meia dúzia de ovos para que a primeira máquina fosse desligada e em seguida as outras.

Naquela noite Seu Tatá dormiu com um anjinho.

Edmir Saint-Clair




COMO ENCONTRAR SEU ANJO – GUIA PRÁTICO




        Todos gostaríamos de ter nosso próprio anjo, exclusivo, nos protegendo, nos acompanhando e fazendo nossa guarda dia e noite.

Com este guia prático você vai ver que isto é possível, basta vencer a barreira do absurdo. Isso é muito fácil, já que ela não existe mesmo.

Para começar a procurar seu anjo faça o oposto, identifique seu demônio particular. Esses dias estressantes facilitam bastante essa tarefa, e a toda hora ele se manifesta. Primeiro, perceba que seu principal antagonista é você mesmo. Somos nossos piores e mais implacáveis sabotadores e críticos. Se a gente pudesse quebrar a própria cara, de vez em quando, não seríamos assim.

Por isso, se não podemos vencê-lo, juntemo-nos a ele, no caso, a nós mesmos. Às vezes, transformamos nossas próprias vidas num verdadeiro inferno, como se estivéssemos com o diabo no corpo, nesses momentos, não vacile, atraque-se com seu capeta e mostre quem manda na porra toda.

A primeira providência é, numa ocasião propícia, convidar seu crítico para conversar. Ofereça-lhe um chazinho, todo crítico adora um chazinho. Durante a conversa, faça-o ver que ele o está se criticando muito severamente e revele a grande verdade, ele é você. No começo ele pode relutar um pouco, mas depois, fatalmente terá que concordar. Ou então, se interne logo porque seu caso está perdido. E, não adianta partir para a agressão, eu garanto que você vai apanhar.

Passada esta fase meio insana, vamos para a segunda etapa.

Que é, ainda, mais insana.

Essa prática seguinte tem suas vantagens. Você pode praticá-la em casa, sozinho, não paga dízimo e não tem sermão de ninguém, nem tem que ler nada. E não precisa ver programa de pastor gritando em canal de televisão.

O incenso é opcional, não é necessário.

Agora vamos lá; na sua sala ou quarto, fique o mais relaxado que puder, sente-se no chão e assuma a posição de Lótus. 

Pode ser também a posição de Ferrari ou McLaren.

Essas posições importadas geralmente são bastante confortáveis. Mas, tem gente que se arranja bem até com a posição Fiat Uno. Tem que ter muito mais flexibilidade, é claro.

Ah, antes coloque um som instrumental que você goste, porque se deixar para colocar depois de fazer a posição escolhida, vai dar o dobro do trabalho.

Comece a pensar em quantos Eus existem em você.

Acesse as memórias de você quando criança, imagine que está se encontrando com ela, com a criança cheia de sonhos que você foi, convide ela para brincar, pergunte o que ela sente, o que ela precisa, o que lhe falta.

Chame seu autocrítico, também, e apresente-o a ele mesmo.  Perceba toda a abrangência de sua própria pluralidade.

Desculpe seus erros, faça um pacto de amizade consigo. Faça a paz entre todos os seus Eus.

Grande parte das pessoas esconde sentimentos de si mesma. Ou seja, nem amigos confidenciais de si mesmos são.

Essa é a pior solidão, a ausência de si mesmo.

Temos que nos aceitar, ficar do nosso lado, isso é fundamental. Mesmo quando não compreendemos por que fizemos aquela merda colossal! Quanto mais difícil é uma situação, mais fortemente precisamos contar com nosso próprio apoio. Sem o acolhimento e a amizade de si mesmo, não há santo, nem anjo, que aguente viver.

Seu anjo da guarda existe e está esperando por esse encontro, há tanto tempo quanto você.

Agora, levante-se e fique bem em frente ao espelho. 

Se olhe com toda a atenção, sem pensar em nada, apenas se olhe, sem pressa, vá se reconhecendo, lentamente, em cada mínimo detalhe, até se enxergar profundamente, com os olhos de sua própria alma.

E, então sorria.

Imediatamente, você verá o seu anjo lhe sorrindo de volta.

- Edmir Saint-Clair


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A VOZ




De repente, ele começou a ouvir uma voz em seus sonhos.

Não eram vozes, no plural, era apenas uma voz específica. 

A lembrança era clara e diferente de tudo que já havia sonhado antes.

Acordou assustado, ainda não havia amanhecido. Sua respiração estava ofegante e demorou até saber onde estava; deitado em seu quarto, em sua cama.

 Não conseguiu mais dormir, estava muito impressionado com aquela voz que não pôde identificar. Não era conhecida, nem familiar, mas era aconchegante.

Foi até a cozinha ferver água para fazer o café. Quando voltou e abriu a torneira da pia para escovar os dentes, a voz já não lhe soava tão clara, tão pouco se lembrava do que lhe dissera.

Quando estava na varanda tomando seu café forte, puxou inutilmente pela memória, que parecia se distanciar como uma gaivota voando em direção ao horizonte.  O nascer do sol estava lindo e meia hora depois já não se lembrava de mais nada. A não ser que uma voz num sonho lhe causara uma impressão profunda que ele não conseguia tirar de seus pensamentos. Esse foi o primeiro dos muitos eventos que estavam por acontecer.

O desenrolar do dia e dos afazeres terminaram por apagar completamente a lembrança. Após o almoço, aquele evento havia fugido completamente de sua memória.

Duas semanas após, o mesmo evento se repetiu com uma fidelidade improvável. Sua angústia foi muito maior do que no despertar da primeira noite. A única diferença, e mais agoniante, é que nessa segunda vez conseguiu reter ainda menos detalhes do que no evento anterior. Apenas o suficiente para se aproximar da certeza de que fora absoluta e estranhamente igual.

Dessa vez, demorou mais tempo para retornar a sua rotina sem sentir aquele incomodo esquisito e inexplicável.

Não demorou para que o evento se repetisse. Apenas alguns dias e dessa vez o impressionou ainda mais, a ponto de atrapalhar uma série de acontecimentos profissionais de sua rotina. Não conseguia se concentrar em mais nada. Naquela noite, tomou dois gramas a mais de ansiolítico e mais um antialérgico para adormecer mais rápido. E foi dormir tentando lembrar-se de qualquer detalhe a mais sobre aquela voz. Sequer conseguia definir se era masculina ou feminina. Menos ainda sobre o que falava.

Na repetição seguinte, a coisa se complicou ainda mais. Quando acordou, após o mesmo sonho, manteve-se parado na mesma posição porque haviam lhe falado que isso facilitava a retenção da lembrança. Passados alguns minutos, não achou que estivesse fazendo algum efeito no seu caso. Até chegar ao banheiro e, enquanto colocava pasta de dentes na escova, resmungou:

— Se essa voz falasse quando estou acordado seria muito mais fácil entender... ô voz zinha burra!

Talvez, por já não estar levando aqueles sonhos tão a sério, acordara de bom humor naquele dia. Até ouvir nitidamente:

— Então está certo. Você se acha capaz de me ouvir conscientemente?  Espero que sim...

Rodrigo foi encontrado desacordado no banheiro pela diarista, que o acordou tão assustada quanto ele.

 Acontece que, daquela manhã em que desmaiara até o dia em que foi encontrado, havia se passado três dias. 

O evento se tornava mais surreal pelo fato de que a diarista havia ido trabalhar na casa de Rodrigo naqueles mesmos três dias e, segundo seu relato, ele não estava em casa. Ela limpara a casa inteira, incluindo o banheiro onde ele foi encontrado e, definitivamente, ele não se encontrava naquela casa durante aqueles dias.

Ela imaginou que ele estivera viajando pois, durante aqueles três dias nada na casa fora mexido. Como se ninguém, além da própria diarista, houvesse estado ali.

Na agência de propaganda onde trabalhava, ele também faltara aos mesmos três dias úteis.

Sua última lembrança era a imagem da expressão aterrorizada de seu próprio rosto no reflexo do espelho.

Ele nunca conseguiu se lembrar de nada do que aconteceu naqueles dias subsequentes.  A única coisa diferente que havia restado daquela experiência surreal eram as manchas de dois filetes de sangue coagulado, uma em cada ouvido. E Nada mais.

Após se alimentar, deitou e demorou algumas horas até se sentir recuperado o suficiente para levantar com um estranha e urgente determinação de ir buscar seu filho no colégio naquele dia. Ele nunca fazia isso, era divorciado e a guarda do filho era compartilhada. O menino já tinha 14 anos e ia e voltava sozinho de ônibus comum, do colégio para a casa da mãe, onde morava.

Ele sabia disso, e o próprio filho não gostava que o pai fosse buscá-lo na porta da escola. Mas, Rodrigo estava agindo como se houvesse sido programado, como um robô, para desempenhar aquela tarefa. Ele não estava pensando, apenas agindo.

Quando parou o carro no ponto de ônibus em frente à escola, viu o filho e mais dois amigos sentados no ponto de ônibus aguardando o coletivo. Abriu a porta do carona, chamou o filho e ofereceu carona aos amigos dele, que entraram no carro rapidamente. Assim que Rodrigo arrancou com seu carro, um caminhão desgovernado invadiu em alta velocidade e bateu violentamente contra o ponto de ônibus, exatamente no lugar onde os três garotos estavam sentados.


DIVINA PROVIDÊNCIA

Tudo que Neyla pensava naquele momento é o que falaria para o filho mais velho quando ele a visse com o olho e os lábios inchados.

Ela sabia o estado em que Maicon ficaria quando visse o que seu pai fizera com ela novamente. Ele crescera presenciando e sofrendo a mesma violência que a mãe desde que se entendia como gente, e não aguentava mais. Desde a última sessão de pancadas, ele prometera a mãe que daria um jeito naquele inferno.

Neyla lembrou-se de cada uma das palavras do filho, e um calafrio percorreu sua espinha de cima a baixo, como se alguém houvesse passado sobre seu túmulo, como diziam na comunidade. A caçulinha Raylane ainda estava com o gesso na perna como consequência da última vez em que Julião estivera na casa deles.

Ele vinha e ia embora quando bem entendia, sem dar satisfação sobre o tempo que passara ausente.

Eles sabiam que eram a segunda família dele, a filial como os vizinhos a chamavam.  Mas, agia como se tudo aquilo fosse a coisa mais normal do mundo.  Quando voltava era sempre a mesma história. Gastava todo dinheiro que encontrava, dormia quase o tempo inteiro e quando estava acordado bebia até começar a implicar com quem estivesse ao seu alcance, mas só em casa. Na rua era um frouxo.

Era o segundo mês de Maicon como caixa de supermercado. O segundo salário que recebia. O primeiro terminara nas mãos do pai, que achou e confiscou a quantia revirando as coisas da mãe.

Neyla passou o dia inteiro sendo consumida pelo medo do que aconteceria quando o filho chegasse, visse Julião dormindo no quarto e os machucados em seu rosto.

Maicon e a mãe tinham uma relação de amor e confiança profundos. Desde que a irmãzinha nascera, Maicon nunca mais havia se envolvido com o submundo que os rodeava. Tinha voltado aos estudos e, desde então, ajudava a mãe a sustentar a casa. Pagava integralmente a creche em que Raylane passava os dias, enquanto a mãe trabalhava como diarista em casas particulares.

Quando a noite chegou, Neyla deu graças a Deus quando Julião acordou, tomou banho e saiu sem falar nada.

 Ela teria tempo para tentar acalmar o filho e evitar uma tragédia doméstica.

Quando Maicon chegou e viu o rosto da mãe fechou as mãos e socou a própria cabeça com força. Neyla o envolveu num abraço e ambos choraram juntos. Não falaram nada. Maicon tirou a mochila das costas, colocou-a no sofá rasgado, deu um beijo no rosto da mãe e saiu sem dar-lhe o dinheiro do salário. Dessa vez, aquele dinheiro teria outro destino.

Neyla tentou impedir que o filho saísse pela porta naquele estado que ela não conhecia, mas pressentia. Calado, com o olhar crispado e o corpo todo endurecido. Ela sabia o que ele iria fazer e implorou, sem resultado. Ela perdera totalmente qualquer contato com ele, que saiu andando como um corpo sem alma.

Maicon rodou por todo o complexo do alemão, procurando os conhecidos dos tempos em que fora aviãozinho e fogueteiro do tráfico. Precisava de uma arma, qualquer uma, a qualquer preço dentro do dinheiro do salário, que não era muito. E ficou rodando pelas vielas meio desorientado, mas decidido.

Em casa, tudo que Neyla podia fazer era rezar, pedir, implorar, prometer e buscar no fundo de sua fé alguma providência que os livrasse da tragédia anunciada.

Ela rezou com toda a fé que sempre tivera desde muito pequena, acendeu uma vela e ficou ajoelhada durante as 4 horas em que Maicon ficou fora. E, cada minuto dessas horas, ela rezou sentido o pavor de que fosse o último. Ela temia por todo a vida que Maicon perderia fugindo ou preso numa penitenciária, ...caso se tornasse o assassino do pai.

Nem a pancada na porta, anunciando a volta de Julião, bêbado, a tirou de sua concentração santa. O crápula se jogou na cama de casal, sem dizer palavra alguma, apenas emitindo um grunhido animalesco.

Pronto, pensou ela, o cenário da tragédia está montado. A primeira coisa que ela fez foi trancar a porta da casa com todas as voltas que a fechadura podia dar.

 O único jeito era tentar manter Maicon do lado de fora e tentar demovê-lo da ideia de matar o pai. Ela guardou as chaves nos seios e voltou a concentrar-se em suas orações e promessas.

Santa Rita de Cássia não podia abandoná-la agora.

Ficou ajoelhada até ouvir o estrondo da porta sendo arrombada por um chute de Maicon que entrou e foi direto para o quarto empunhando a arma já engatilhada.

Neyla o interceptou na porta e quando os dois olharam para a cama viram o improvável: Julião jazia morto, com a boca e os olhos arregalados, quase fora das órbitas, com a expressão aterrorizada como se sua última visão, houvesse lhe arrancado a vida..

Edmir Saint-Clair

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A CHEGADA - Filme

 



MEU AMIGO QUE VOAVA




Um cara engraçado, que sabia rir de si próprio como só as boas pessoas sabem.  Uma combinação incomum, que misturava coragem com um jeito atrapalhado. Se a sorte não tivesse se juntado nesse tempero, teria ido mais cedo para o outro lado.

Uma pessoa aberta a novos pensamentos. Adorava uma novidade. Um desbravador. Sempre que ouvia falar em algum lugar novo, fora do “circuito descolado”, punha-se a caminho para conhecer. De moto, de Kombi ou de Brucutu, um carro equivalente a um Off Road, adaptado por ele nos anos 90 do século 20. 

Morador do Leblon, depois Ipanema, curiosamente era a montanha e não a praia, que o seduzia. Não era morar na montanha, a onda dele era saltar lá de cima. E Lá em cima ele encontrou sua praia. E decidiu passar o resto da vida voando. E passou.

Quando descobriu que podia ter asas, demitiu-se do cargo de engenheiro civil no funcionalismo público, que lhe remunerava muito bem e lhe oferecia estabilidade, para fazer vôos duplos de parapente, em São Conrado, no Rio de Janeiro que tanto amava.

Foi feliz. Viajou e se aventurou, como gostava, para voar em lugares inusitados. Coisas do Bode. Bode não, Carlinhos. Que Carlinhos? O Bode. 

Teve a vida cheia de altos vôos e soube fazer suas escolhas valerem à pena. Conservou, até o fim, a mesma curiosidade adolescente, a mesma alegria ingênua e espontânea. Era capaz de rir e de fazer piadas nos momentos mais difíceis que enfrentou.

Um aventureiro, corajoso por natureza. Amigo por vocação. Sempre teve muitos porque sabia ser um amigo dos grandes. Daqueles que a gente pode contar e ligar no meio da madrugada, fosse para chorar ou para comemorar. 

No imaginário popular, não devemos contar nossas expectativas antes que se realizem, para não despertar olho gordo. Mas, para mim, ele dava sorte. Todas as vezes que estava esperando o desfecho de alguma situação, uma resposta importante, contava para ele. Sempre me deu sorte.

As muitas décadas que convivemos, me deram a honra conhecer um ser humano autêntico e admirável. Um dos momentos mais significativos de nossa amizade, é a satisfação de ter podido expressar, com todas as letras, pessoalmente, o meu amor e a minha admiração para com esse irmão que cativou minha alma com sua essência cheia de bondade.

A ausência já não machuca tanto depois de tantos anos. Mas, nunca vou deixar de sentir saudades. 

Ao mesmo tempo, tenho muita alegria de ter convivido com esse amigo que me ensinou que era possível voar.


- Edmir Saint-Clair

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AMANTES



O toque acendeu o sol,

                                                        Dois sóis,

Quentes, atraentes, penetrantes,

Somando-se num calor ardente, pendente, arfante


Pele, seda, almas sussurrantes,

Atraindo-se, exalando seus perfumes provocantes,

Fêmea nua, natureza dominante


A carne quente, úmida, envolvente,

Sugando, atraindo, desejando urgente,

Acordando o desejo de se completar inteira,

Em cada poro, em cada arfar, em cada instante


Teu ar, meu ar, arfantes, 

dentro, fora,

                                            Inebriantes,

Somos insanos, alucinados, delirantes,

Cabendo juntos no mesmo universo latejante,

Somos a vida, somos amor, somos amantes.


Edmir Saint-Clair



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NO ÚLTIMO MOMENTO


Ele acordou com o barulho de vozes na porta de seu quarto. Morava com os pais, apesar da idade e de não precisar economicamente. Mas, ao contrário do que isso poderia parecer, nunca se dera bem com seu pai. Uma situação bastante estranha.

Olhou o celular para ver às horas, 05h00min da manhã. Há anos seus pais não acordavam a essa hora. Só faziam isso quando iam viajar ou fazer exames médicos. Era janeiro, pouco depois do ano novo, tanto uma coisa quanto a outra eram plenamente viáveis. Voltou a dormir.

Acordou, novamente, às 11 da manhã. Seu trabalho lhe permitia escolher seus horários. Havia um incomodo no ar, algo estranho.

Ainda tomando café, foi até o quarto dos pais. Nada indicava que tivessem viajado. Ao contrário, o desarrumado incomum do quarto não parecia normal.  Seria pouco provável que seu pai viajasse deixando portas de armário abertas e a  cama do casal desfeita. Estranho, mas poderiam estar atrasados e não tiveram opção a não ser deixar tudo do jeito que estava.

A noite chegou e alguma coisa continuava estranha. Pouco depois das 10h da noite, recebeu um telefonema da sobrinha avisando que o avô estava no hospital, internado no CTI. Ficaria lá por alguns dias e não tinha previsão de alta.

A sobrinha lhe contou que avô/pai tivera um acúmulo bastante severo de liquido na cavidade torácica, o que provocou uma violenta compressão no coração e pulmões, pressionando-lhes perigosamente.

− O Senhor deve estar se sentindo muito mal, uma sensação de sufocamento. Seu coração está tão pressionado que mal consegue bater. Vamos resolver isso, fique calmo. Disse a médica visivelmente preocupada. Exclamou a primeira médica que o atendeu.

O pai foi submetido aos cuidados emergenciais necessários, lhe drenaram o líquido descomprimindo os órgãos e aliviando o estado geral. Ficaria no CTI,  visitas somente alguns dias depois.

Os irmãos já haviam chegado de suas cidades atuais e estavam todos aguardando na ante-sala de entrada para os leitos no amplo salão do  centro de tratamento intensivo, onde ficavam os boxes e seus respectivos pacientes. Um Centro de Terapia Intensiva de grande porte. O médico veio conversar com a família, a mãe ficou lá dentro, ao lado do pai, no leito.

 Nesses dias em que o pai está no CTI, a mãe ficou no quarto normal do hospital que está reservado para ele. O evento havia sido gravíssimo e poderia tê-lo morto não fosse pela condição excepcional de saúde que sempre gozara. Se seu coração não fosse tão forte, não teria resistido. Sua saúde sempre fora invejável e motivo de orgulho próprio, mesmo aos 79 anos.

Agora, ali naquele CTI, parecia totalmente abatido. Ele nunca vira o pai daquele jeito, tão fraco e frágil. Pelo lado de fora da janela de vidro que dá acesso aos leitos, ele pode vê-lo sem que o pai pudesse vê-lo de volta. Sentiu uma compaixão intensa, profunda e surpreendente. Também sentiu pena.

Não trocavam palavra há 20 anos. Mas, não se entendiam desde muito antes, do início da adolescência. Na verdade, nunca se deram bem. Ele nem se lembra mais desde quando. Uma relação conflituosa e problemática, que fora piorando,  paulatinamente, conforme o tempo foi passando.

Uma relação pai e filho presume boas experiências juntos, é uma relação que marca e determina profundamente nossos destinos. Nesse caso, essa relação nunca aconteceu. Desde muito cedo, um muro foi se erguendo, tijolo a tijolo, até  parecer intransponível. Uma sucessão de erros mútuos que determinaram o rumo de uma relação que, só começou a parar de piorar, a partir do momento em que ele deixou de dirigir a palavra e de sequer fazer menção de ter ouvido quando o pai se dirigia a ele.

Com o tempo, o pai também não se dirigia mais a ele. Sua mãe era a porta-voz dos dois. Aquilo fora necessário para interromper aquela tensão cada vez mais insuportável. Com a aquiescência da mãe, a partir desse silêncio, a princípio unilateral, hoje reinante, a tensão se dissipara.

 O silêncio e a ausência total de interação entre os dois trouxe uma paz que jamais haviam experimentado na convivência.

Não havia discórdia, não havia cobranças. Não havia nada além das presenças físicas quando transitavam em silêncio pelo longo corredor, eventualmente, na sala ou na cozinha. Silenciosos e ignorando a presença do outro. Há tempos não se respeitavam tanto. Nunca a relação dos dois fora tão pacífica e tranqüila.

A sensação de paz o levou a evitar cada vez mais cruzar com o pai. O amplo apartamento facilitava a missão.  Só saía do quarto pela manhã para o trabalho e voltava pelas dez da noite entrando direto para o quarto. A partir desse horário, era ainda mais tranquilo, o pai era desses que dormem e acordam cedo. Ele, exatamente o oposto. Os horários se encaixavam perfeitamente. Não era raro passarem dias sem que se vissem.

O mais estranho. É que ele voltara a morar na casa dos pais após a última separação, a princípio por algum tempo apenas, já aos quarenta anos. Acontece que o tempo foi passando e prolongou-se por 10 anos até desaguar naquele momento.

Ele sempre se sentira com motivos de sobra para não falar com o pai há tanto tempo. Sua mãe concordava com a atitude, por ela, ele já deveria ter parado de falar até antes. Era estranho que não tivesse saído da casa há tempos. Tinha condições financeiras para isso, não havia porque sustentar aquela situação esdrúxula. 

O fato é que, desde aquele dia até hoje, havia se passado 20 anos.  Imediatamente, ele deteve aquele raciocínio e deixou-se levar apenas pela intuição e pela emoção. Estava confuso. A proximidade da morte de uma pessoa que sempre lhe parecera imortal era muito complicada. Ele não sabia como reagir. Não pensou em perdão ou qualquer coisa parecida. Tinha muitos problemas com essa palavra. Não pensou. Fez.

Em alguns dias, o pai havia ido para um quarto espaçoso e confortável de um bom hospital particular e todos os filhos, inclusive os que moravam fora do Rio, estavam na casa da família onde todos cresceram juntos. O clima era de muita apreensão, mas com muito carinho entre os irmãos que se apoiavam mutuamente.  

Pela manhã, chegou o resultado da biópsia: câncer no pulmão, estágio III de IV.

Quando se viu sozinho, pela primeira vez, desde que soube do resultado, surpreendeu-se com a própria serenidade. Apesar de chocado, impactado pelo inesperado, estava estranhamente sereno. Muito, pelo imponderável da situação. O pai sempre fora forte levava uma vida confortável, sem preocupações e sua única atividade diária obrigatória era jogar vôlei com os amigos na praia. Fazia check-ups periódicos com uma regularidade elogiável.

Ele não tinha dúvidas de que os pais se divertiam quando saíam para fazer exames. Estavam sempre repetindo o programa.

O pai tinha o mesmo bronzeado em qualquer época do ano. Aposentado e com uma vida tranqüila e bem amparada, fruto de seu trabalho, se tornara uma pessoa que mudara o comportamento nos últimos anos. Tornara-se um homem mais sociável, bem humorado e com um círculo de amizades que lhe proporcionava uma vida social com atividades freqüentes e tão intensa quando ele desejasse, já que dos convites que recebia não aceitava grande parte. 

Uma pessoa querida pelos amigos, que promovia churrascos e comemorações. O carinho cada vez mais explícito, dos amigos, durante todo tempo em que a doença evoluía foi comovente. As manifestações e presenças dos amigos e vizinhos só não foram mais freqüentes pela absoluta incapacidade do pai em lidar com os próprios sentimentos. 

Esses fatos, que ele passou a testemunhar, mostravam que o pai era uma pessoa que conquistara a amizade, o carinho e o respeito de muita gente ao seu redor.

Então porque o pai não fora assim com ele?

Estava longe de ser um bom pai. Toda a vida lhe veio à cabeça. Decididamente, sentimento de culpa ele não tinha nenhum. Tinha motivos. Sérios. Decidiu não tentar mais entender os motivos que o estavam levando a agir daquela forma inesperada e surpreendente para ele mesmo. Um carinho que ele não sabia de onde estava brotando. Algo diferente e desconhecido assumira o controle de suas ações.

Passou a se interessar, acompanhar, ajudar e incentivar o pai diariamente, dedicando um carinho que ele não acreditava que ainda pudesse existir naquela relação. O pai lhe devolvia na mesma moeda, do seu jeito. Evitando a emoção. Mas, mostrando amor e carinho como nunca demonstrara.

E foi assim pelos 10 meses seguintes, até aquela noite no quarto do hospital, no qual ele havia sido internado pela última vez, depois de dezenas de indas e vindas.

Estavam todos os filhos e a mãe. Como faziam todos os dias,  desde essa última internação. Antes dos filhos irem embora à noite, se reuniam em volta da cama do pai numa ordem que aconteceu espontaneamente e que se repetia por esses meses: a mãe de mãos dadas com a mão direita do pai deitado, um irmão com a mão postada sobre um tornozelo e o outro irmão no outro. A irmã fechava o círculo segurando a mão esquerda, e dessa forma o envolviam num círculo para rezar o pai nosso que ele gostava.

Nessa noite, a doença avançava para seu desfecho e o pai já não falava. Ele estava ao lado perto da mão esquerda. O pai segurou-lhe a mão, olhou para ele e a apertou. Ele entendeu que o pai queria rezar e chamou os outros. Chamou também a irmã para que ocupasse seu lugar na mão esquerda. 

Nesse momento, o pai levantou levemente o braço e segurou-lhe a mão, apertando-a tão forte quanto pode, deixando claro que queria que ele ficasse ali, de mãos dadas, naquela que seria a sua última reza.

Rezaram juntos, e durante todo aquele intenso momento o pai não afrouxou aquele aperto na mão nem por um segundo.

Ele entendeu com toda a clareza e profundidade aquele último gesto e sentiu-se em paz quando, oito horas depois, presenciou o pai expirar pela última vez.

Ele finalmente compreendeu porque não se mudara daquela casa e, também, porque seu pai nunca o mandara embora: apesar de não terem nenhuma interação, estarem sob o mesmo teto foi a única maneira, intuitiva, que pai e filho encontraram para não se perderem para sempre.

O choro foi triste, mas foi leve.

Houve beleza no final daquela história.

Finalmente, pai e filho estavam em paz.

- Edmir Saint-Clair

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