O ORIENTADOR LITERÁRIO é um profissional que acompanha, ensina e participa de todo processo de criação de um livro.
- - - - -- UM PROFISSIONAL EXPERIENTE, especializado em redação criativa, capaz de despertar toda a sua criatividade potencial escondida.
É assim que o Sr. Otávio é conhecido e cumprimentado por
todos naquele quarteirão de Copacabana. Seu Tatá é conhecido por todos os comerciantes
legais e ilegais daquela região. Depois da morte da esposa, a manifestação de
solidariedade de todos o deixou ainda mais próximo e grato a todas aquelas
pessoas que o adotaram. Graças ao apoio que recebeu, em vez de se trancar em
casa, passou a circular pela região só para conversar com o pessoal. Após o
luto, recuperou-se de tal forma que poucos poderiam imaginar.
Não tinha filhos,
morava sozinho e tinha uma aposentadoria que lhe bastava. Mas, o que mais
colaborou para a recuperação do seu Tatá, depois da viuvez, foi o reencontro
com os amigos da juventude que ainda estavam vivos, depois que a filha do vizinho
o convenceu a comprar um notebook e abriu uma conta para ele em todas as mídias
sociais.
Ele se deslumbrou. Passava horas e horas procurando antigos
amigos, namoradas, conhecidos, recortes de jornais de época, vídeos antigos e
tudo mais que fazia parte de sua memória afetiva. Em algumas tardes, voltava no
tempo.
Segundo seu médico, ele vinha apresentando melhoras em todos
os índices e marcadores que os exames podem mostrar. Seu estado de espírito
parecia ter sido mergulhado na fonte da juventude. Para completar o quadro, encontrou
5 amigos que ainda estavam vivos, pelo facebook e, pasmem, que ainda moravam em Copacabana.
Passaram a se encontrar todos os dias na praça do Bairro
Peixoto, onde se divertiam e partilhavam memórias e vivências.
Seu Tatá parecia ter voltado à juventude. Até o dia em que
acordou com o barulho de máquinas bem embaixo de sua janela. Era no terreno ao
lado, que estava sendo preparado para virar um galpão para estacionamento.
Ele aguentou o barulho por vários dias, apesar daquilo o
irritar profundamente.
Mas, fazer o quê? Pelo menos durava só até umas 5 horas
da tarde.
Até o dia, ou melhor a noite, em que a obra do piso
cimentado estava no final e três máquinas semelhantes a grandes enceradoras domésticas
antigas, do seu tempo, invadiram a noite com seus barulhos não muito altos, mas
extremamente irritantes.
Quando Seu Tatá acordou de um cochilo, às 8 horas da noite,
as máquinas ainda estavam trabalhando e aquilo o irritou ainda mais. Com
certeza, aqueles infelizes iriam até às 10 da noite com aquele barulho. Se não
parassem ele ligaria para a polícia, afinal é para isso que existe a Lei do silêncio,
pelo menos na época dele existia e as pessoas e as obras respeitavam certas
convenções de boa vizinhança.
Às 10:30 da noite não havia nem sinal de que as máquinas
iriam parar. À essa altura, Seu Tatá já estava bastante irritado e sentia-se
enraivecido como há tanto tempo que nem se lembrava mais. Pegou o telefone para
ligar para a polícia e pensou que de nada adiantaria. Iria demorar tanto até a
polícia chegar, se chegasse, que os operários já teriam parado e de nada teria
adiantado sua irritação e o chamado telefônico.
Mas, ele precisava fazer alguma coisa.
Foi até a geladeira se lembrando de como era bom ter sido
um moleque bicho solto...Só de pensar no que iria fazer sua pressão arterial
diminuiu, sua glicose baixou e quase teve uma ereção.
Pegou uma caixa de ovos, apagou as luzes do apartamento,
fechou as cortinas, mas não as janelas. E começou a jogar os ovos nos três
homens que operavam as máquinas e em mais um que fiscalizava. Jogava e se escondia,
rindo sem parar. Cada ovo jogado era uma sessão de risadas. E o velho tinha uma
excelente mira...
O que lhe causou uma crise de riso impagável.
Não precisou mais do que meia dúzia de ovos para que a primeira
máquina fosse desligada e em seguida as outras.
De repente, ele começou a ouvir uma voz em seus sonhos.
Não eram vozes, no plural, era apenas uma voz específica.
A
lembrança era clara e diferente de tudo que já havia sonhado antes.
Acordou assustado, ainda não havia amanhecido. Sua
respiração estava ofegante e demorou até saber onde estava; deitado em seu
quarto, em sua cama.
Não conseguiu mais dormir, estava muito impressionado com
aquela voz que não pôde identificar. Não era conhecida, nem familiar, mas era
aconchegante.
Foi até a cozinha ferver água para fazer o café. Quando
voltou e abriu a torneira da pia para escovar os dentes, a voz já não lhe soava
tão clara, tão pouco se lembrava do que lhe dissera.
Quando estava na varanda tomando seu café forte, puxou
inutilmente pela memória, que parecia se distanciar como uma gaivota voando em
direção ao horizonte. O nascer do sol
estava lindo e meia hora depois já não se lembrava de mais nada. A não ser que
uma voz num sonho lhe causara uma impressão profunda que ele não conseguia
tirar de seus pensamentos. Esse foi o primeiro dos muitos eventos que estavam
por acontecer.
O desenrolar do dia e dos afazeres terminaram por apagar
completamente a lembrança. Após o almoço, aquele evento havia fugido
completamente de sua memória.
Duas semanas após, o mesmo evento se repetiu com uma
fidelidade improvável. Sua angústia foi muito maior do que no despertar da
primeira noite. A única diferença, e mais agoniante, é que nessa segunda vez
conseguiu reter ainda menos detalhes do que no evento anterior. Apenas o
suficiente para se aproximar da certeza de que fora absoluta e estranhamente
igual.
Dessa vez, demorou mais tempo para retornar a sua rotina sem
sentir aquele incomodo esquisito e inexplicável.
Não demorou para que o evento se repetisse. Apenas alguns dias
e dessa vez o impressionou ainda mais, a ponto de atrapalhar uma série de
acontecimentos profissionais de sua rotina. Não conseguia se concentrar em mais
nada. Naquela noite, tomou dois gramas a mais de ansiolítico e mais um
antialérgico para adormecer mais rápido. E foi dormir tentando lembrar-se de
qualquer detalhe a mais sobre aquela voz. Sequer conseguia definir se era
masculina ou feminina. Menos ainda sobre o que falava.
Na repetição seguinte, a coisa se complicou ainda mais.
Quando acordou, após o mesmo sonho, manteve-se parado na mesma posição porque
haviam lhe falado que isso facilitava a retenção da lembrança. Passados alguns
minutos, não achou que estivesse fazendo algum efeito no seu caso. Até chegar
ao banheiro e, enquanto colocava pasta de dentes na escova, resmungou:
— Se essa voz falasse quando estou acordado seria muito mais
fácil entender... ô voz zinha burra!
Talvez, por já não estar levando aqueles sonhos tão a sério,
acordara de bom humor naquele dia. Até ouvir nitidamente:
— Então está certo. Você se acha capaz de me ouvir
conscientemente? Espero que sim...
Rodrigo foi encontrado desacordado no banheiro pela
diarista, que o acordou tão assustada quanto ele.
Acontece que, daquela
manhã em que desmaiara até o dia em que foi encontrado, havia se passado três
dias.
O evento se tornava mais surreal pelo fato de que a diarista
havia ido trabalhar na casa de Rodrigo naqueles mesmos três dias e, segundo seu
relato, ele não estava em casa. Ela limpara a casa inteira, incluindo o
banheiro onde ele foi encontrado e, definitivamente, ele não se encontrava
naquela casa durante aqueles dias.
Ela imaginou que ele estivera viajando pois, durante aqueles
três dias nada na casa fora mexido. Como se ninguém, além da própria diarista,
houvesse estado ali.
Na agência de propaganda onde trabalhava, ele também faltara
aos mesmos três dias úteis.
Sua última lembrança era a imagem da expressão aterrorizada
de seu próprio rosto no reflexo do espelho.
Ele nunca conseguiu se lembrar de nada do que aconteceu
naqueles dias subsequentes. A única
coisa diferente que havia restado daquela experiência surreal eram as manchas
de dois filetes de sangue coagulado, uma em cada ouvido. E Nada mais.
Após se alimentar, deitou e demorou algumas horas até se sentir
recuperado o suficiente para levantar com um estranha e urgente determinação de
ir buscar seu filho no colégio naquele dia. Ele nunca fazia isso, era
divorciado e a guarda do filho era compartilhada. O menino já tinha 14 anos e
ia e voltava sozinho de ônibus comum, do colégio para a casa da mãe, onde
morava.
Ele sabia disso, e o próprio filho não gostava que o pai
fosse buscá-lo na porta da escola. Mas, Rodrigo estava agindo como se houvesse
sido programado, como um robô, para desempenhar aquela tarefa. Ele não estava
pensando, apenas agindo.
Quando parou o carro no ponto de ônibus em frente à escola,
viu o filho e mais dois amigos sentados no ponto de ônibus aguardando o
coletivo. Abriu a porta do carona, chamou o filho e ofereceu carona aos amigos
dele, que entraram no carro rapidamente. Assim que Rodrigo arrancou com seu
carro, um caminhão desgovernado invadiu em alta velocidade e bateu
violentamente contra o ponto de ônibus, exatamente no lugar onde os três
garotos estavam sentados.
Parece a
chegada de uma gigantesca maratona da qual toda a população participou. A
sensação coletiva é de exaustão, de enorme cansaço físico e emocional. Para
onde olharmos, veremos a mesma coisa. Uma mistura confusa de afetos e sensações
contagiantes que nos coloca, a todos, num mesmo e imenso barco onde juntos navegamos
por águas sentimentais que provocam uma fragilização emocional coletiva alimentada freneticamente pelas mídias e toda sorte de propagandas, músicas e decorações
natalinas onipresentes até onde a vista e os ouvidos podem alcançar. Não tem como fugir.
Faz
parte da nossa cultura essa “emocionalização” potencializada pelas festas natalinas
e pelo final do ano. Em suas origens, havia um apelo religioso que, por
conseguinte, conduzia as pessoas à reflexão típica da cultura judaico-cristã,
que sempre leva todos os "pecadores" a um certo grau de sentimentos
de tristeza e culpa. A tradição é pensar em nossos erros, frustrações e
ausências.
Mesmo
que não tenhamos feito lista alguma de resoluções e planos para o ano novo, o
que nos vem à lembrança é uma relação de coisas que pretendíamos ter realizado
e não o fizemos. A data que, hoje, tem pouco de suas origens religiosas, foi
engolida pelo Marketing que aproveitou essa “emocionalidade” exacerbada,
potencializando-a ainda mais, através das ações de publicidade, fazendo
transbordar essas emoções de frustração e culpa que são habilmente canalizadas
para o aumento do consumo de bens.
Quanto
mais o envolvimento, a emoção e a culpa forem despertadas, mais cada um de nós
vai gastar dinheiro.
Ao
refletir sobre esse movimento anual, me parece que valeria a pena experimentar
uma forma de, ao chegarmos ao final do ano, em vez de pensarmos nas besteiras e
bobagens que fizemos ou deixamos de fazer, como em todos os anos passados,
pudéssemos reconhecer nossos acertos e mudanças positivas.
Pensando
numa maneira leve e produtiva de alcançar esse objetivo, podemos brincar de fazer
durante o ano seguinte, uma lista que pode mudar completamente essa sensação
desconfortável que a “tristeza de fim de ano” provoca na maioria de nós.
E Se, em vez dos afetos
negativos, no próximo ano tenhamos uma relação de afetos positivos para
recordarmos?
Pensando
nisso, proponho AMA NOVA lista de ano novo.
A
diferença, é que não será uma lista de planos e metas sobre entrar na academia
segunda-feira, começar um regime ou aprender um novo idioma.
Será
uma lista de realizações e não uma lista de desejos.
A nova
lista será feita não antes, mas durante o desenrolar do novo ano.
Uma
brincadeira diária de registrar nossos eventos rotineiros, mas só as ações que
foram efetivamente realizadas, que aconteceram de verdade. Porque de boas
intenções o inferno já nos enche diariamente.
E o
objetivo maior é aumentar o autoconhecimento de forma leve e nos dar reais
motivos para acreditarmos em nós mesmos.
A NOVA
lista de ano novo:
1 -
Anote tudo que acontecer de bom com você, todos os dias. Por mínimas que sejam.
2 -
Registre todas as manifestações culturais as quais tiver acesso e as suas
impressões sobre o que sentiu. Seja Um artista de rua, um cantor desconhecido
no barzinho, filmes, peças de teatro...e claro, as grandes produções que
assistir.
3 -
Registre todas as vezes em que perceber um traço em si que não lhe agrada.
Escrever potencializa a introjeção e induz a reflexão sem culpa. Na primeira
oportunidade tente fazer diferente e anote com destaque quando conseguir.
4 -
Anote todas as vezes que conseguir se conter e evitar uma briga na qual,
normalmente, você se envolveria.
5 -
Anote todas as vezes em que conseguir trocar a competitividade pelo
companheirismo.
6 -
Registre as vezes em que estiver sozinho e sentir uma sensação gostosa de
alegria e bem-estar.
7 -
Anote, com destaque, todas as vezes em que conseguir AGIR exatamente como você
gostaria.
Dessa
forma simples e acessível a qualquer pessoa, no final do ano seguinte, teremos
inaugurado um caminho totalmente novo, através do autoconhecimento, para nos
orgulharmos de nós mesmos por motivos concretos e determinantes.
E estaremos
alimentando a crença mais importante e positiva que existe: a crença de cada um
em si e de que, todos, temos o poder de modificar a nós mesmos.
Um
cara engraçado, que sabia rir de si próprio como só as boas pessoas sabem. Uma combinação incomum, que misturava coragem
com um jeito atrapalhado. Se a sorte não tivesse se juntado nesse tempero,
teria ido mais cedo para o outro lado.
Uma
pessoa aberta a novos pensamentos. Adorava uma novidade. Um desbravador. Sempre que ouvia
falar em algum lugar novo, fora do “circuito descolado”, punha-se a caminho
para conhecer. De moto, de Kombi ou de Brucutu, um carro equivalente a um Off Road, adaptado por ele nos anos 90 do século 20.
Morador
do Leblon, depois Ipanema, curiosamente era a montanha e não a praia, que o
seduzia. Não era morar na montanha, a onda dele era saltar lá de cima. E Lá em
cima ele encontrou sua praia. E decidiu passar o resto da vida voando. E
passou.
Quando
descobriu que podia ter asas, demitiu-se do cargo de engenheiro civil no
funcionalismo público, que lhe remunerava muito bem e lhe oferecia
estabilidade, para fazer vôos duplos de parapente, em São Conrado, no Rio de Janeiro que tanto amava.
Foi
feliz. Viajou e se aventurou, como gostava, para voar em lugares inusitados.
Coisas do Bode. Bode não, Carlinhos. Que Carlinhos? O Bode.
Teve
a vida cheia de altos vôos e soube fazer suas escolhas valerem à pena. Conservou,
até o fim, a mesma curiosidade adolescente, a mesma alegria ingênua e espontânea. Era capaz de rir e de fazer piadas nos momentos mais difíceis que enfrentou.
Um
aventureiro, corajoso por natureza. Amigo por vocação. Sempre teve muitos porque sabia
ser um amigo dos grandes. Daqueles que a gente pode contar e ligar no meio da
madrugada, fosse para chorar ou para comemorar.
No imaginário popular, não
devemos contar nossas expectativas antes que se realizem, para não despertar olho gordo. Mas, para
mim, ele dava sorte. Todas as vezes que estava esperando o desfecho de alguma situação, uma resposta importante, contava para ele. Sempre me deu sorte.
As
muitas décadas que convivemos, me deram a honra conhecer um ser humano
autêntico e admirável. Um dos momentos mais significativos de nossa amizade, é a
satisfação de ter podido expressar, com todas as letras, pessoalmente, o meu
amor e a minha admiração para com esse irmão que cativou minha alma com sua
essência cheia de bondade.
A ausência já não machuca tanto depois de tantos anos. Mas, nunca vou deixar de sentir saudades.
Ao mesmo
tempo, tenho muita alegria de ter convivido com esse amigo que me ensinou que era possível voar.
Ele acordou com o barulho de vozes na porta de
seu quarto. Morava com os pais, apesar da idade e de não precisar
economicamente. Mas, ao contrário do que isso poderia parecer, nunca se dera
bem com seu pai. Uma situação bastante estranha.
Olhou
o celular para ver às horas, 05h00min da manhã. Há anos seus pais não acordavam a
essa hora. Só faziam isso quando iam viajar ou fazer exames médicos. Era janeiro, pouco
depois do ano novo, tanto uma coisa quanto a outra eram plenamente viáveis.
Voltou a dormir.
Acordou, novamente, às 11 da manhã. Seu trabalho lhe permitia escolher seus horários. Havia um incomodo no ar, algo estranho.
Ainda tomando café, foi até o quarto dos pais. Nada indicava
que tivessem viajado. Ao contrário, o desarrumado incomum do quarto não parecia normal. Seria pouco provável que seu pai viajasse deixando portas de armário
abertas e a cama do casal desfeita. Estranho, mas poderiam estar atrasados e não
tiveram opção a não ser deixar tudo do jeito que estava.
A noite chegou e alguma coisa continuava estranha. Pouco depois das
10h da noite, recebeu um telefonema da sobrinha avisando que o avô estava no
hospital, internado no CTI. Ficaria lá por alguns dias e não tinha previsão de alta.
A sobrinha lhe contou que avô/pai tivera um acúmulo bastante severo de liquido na cavidade torácica, o que provocou uma
violenta compressão no coração e pulmões, pressionando-lhes perigosamente.
− O
Senhor deve estar se sentindo muito mal, uma sensação de sufocamento. Seu
coração está tão pressionado que mal consegue bater. Vamos resolver isso, fique
calmo. Disse a médica visivelmente preocupada. Exclamou a primeira médica que o atendeu.
O
pai foi submetido aos cuidados emergenciais necessários, lhe drenaram o líquido
descomprimindo os órgãos e aliviando o estado geral. Ficaria no CTI, visitas somente alguns dias depois.
Os
irmãos já haviam chegado de suas cidades atuais e estavam todos aguardando na
ante-sala de entrada para os leitos no amplo salão do centro de tratamento intensivo,
onde ficavam os boxes e seus respectivos pacientes. Um Centro de Terapia
Intensiva de grande porte. O médico veio conversar com a família, a mãe ficou
lá dentro, ao lado do pai, no leito.
Nesses dias em que o pai está no CTI, a mãe ficou no quarto normal do hospital que está reservado para ele. O evento
havia sido gravíssimo e poderia tê-lo morto não fosse pela condição excepcional
de saúde que sempre gozara. Se seu coração não fosse tão forte, não teria
resistido. Sua saúde sempre fora invejável e motivo de orgulho próprio, mesmo
aos 79 anos.
Agora,
ali naquele CTI, parecia totalmente abatido. Ele nunca vira o pai daquele
jeito, tão fraco e frágil. Pelo lado de fora da janela de vidro que dá
acesso aos leitos, ele pode vê-lo sem que o pai pudesse vê-lo de volta. Sentiu
uma compaixão intensa, profunda e surpreendente. Também sentiu pena.
Não
trocavam palavra há 20 anos. Mas, não se entendiam desde muito antes, do início
da adolescência. Na verdade, nunca se deram bem. Ele nem se lembra mais desde quando.
Uma relação conflituosa e problemática, que fora piorando, paulatinamente, conforme o tempo foi
passando.
Uma
relação pai e filho presume boas experiências juntos, é uma relação que marca
e determina profundamente nossos destinos. Nesse caso, essa relação nunca
aconteceu. Desde muito cedo, um muro foi se erguendo, tijolo a tijolo, até parecer intransponível. Uma sucessão de erros mútuos que determinaram o rumo de uma relação
que, só começou a parar de piorar, a partir do momento em que ele deixou de
dirigir a palavra e de sequer fazer menção de ter ouvido quando o pai se
dirigia a ele.
Com
o tempo, o pai também não se dirigia mais a ele. Sua mãe era a porta-voz dos dois.
Aquilo fora necessário para interromper aquela tensão cada vez mais
insuportável. Com a aquiescência da mãe, a partir desse silêncio, a princípio
unilateral, hoje reinante, a tensão se dissipara.
O silêncio e a ausência total de interação
entre os dois trouxe uma paz que jamais haviam experimentado na convivência.
Não havia discórdia, não havia cobranças. Não havia nada além das presenças
físicas quando transitavam em silêncio pelo longo corredor, eventualmente, na sala
ou na cozinha. Silenciosos e ignorando a presença do outro. Há tempos não se
respeitavam tanto. Nunca a relação dos dois fora tão pacífica e tranqüila.
A
sensação de paz o levou a evitar cada vez mais cruzar com o pai. O amplo apartamento
facilitava a missão. Só saía do quarto pela manhã para o trabalho
e voltava pelas dez da noite entrando direto para o quarto. A partir desse
horário, era ainda mais tranquilo, o pai era desses que dormem e acordam cedo. Ele, exatamente o oposto. Os horários se encaixavam perfeitamente. Não era raro passarem dias sem que
se vissem.
O
mais estranho. É que ele voltara a morar na casa dos pais após a última
separação, a princípio por algum tempo apenas, já aos quarenta anos. Acontece
que o tempo foi passando e prolongou-se por 10 anos até desaguar naquele
momento.
Ele
sempre se sentira com motivos de sobra para não falar com o pai há tanto tempo.
Sua mãe concordava com a atitude, por ela, ele já deveria ter parado de falar até antes. Era estranho
que não tivesse saído da casa há tempos. Tinha condições financeiras para isso, não havia porque sustentar aquela situação esdrúxula.
O
fato é que, desde aquele dia até hoje, havia se passado 20 anos. Imediatamente, ele deteve aquele raciocínio e
deixou-se levar apenas pela intuição e pela emoção. Estava confuso. A
proximidade da morte de uma pessoa que sempre lhe parecera imortal era muito
complicada. Ele não sabia como reagir. Não pensou em perdão ou qualquer coisa
parecida. Tinha muitos problemas com essa palavra. Não pensou. Fez.
Em
alguns dias, o pai havia ido para um quarto espaçoso e confortável de um bom
hospital particular e todos os filhos, inclusive os que moravam fora do Rio,
estavam na casa da família onde todos cresceram juntos. O clima era de muita apreensão, mas
com muito carinho entre os irmãos que se apoiavam mutuamente.
Pela
manhã, chegou o resultado da biópsia: câncer no pulmão, estágio III de IV.
Quando
se viu sozinho, pela primeira vez, desde que soube do resultado, surpreendeu-se
com a própria serenidade. Apesar de chocado, impactado pelo inesperado, estava
estranhamente sereno. Muito, pelo imponderável da situação. O pai sempre fora
forte levava uma vida confortável, sem preocupações e sua única atividade
diária obrigatória era jogar vôlei com os amigos na praia. Fazia check-ups
periódicos com uma regularidade elogiável.
Ele não tinha dúvidas de que os pais se divertiam quando saíam para fazer exames. Estavam sempre repetindo o
programa.
O
pai tinha o mesmo bronzeado em qualquer época do ano. Aposentado e com uma vida
tranqüila e bem amparada, fruto de seu trabalho, se tornara uma pessoa que
mudara o comportamento nos últimos anos. Tornara-se um homem mais sociável, bem
humorado e com um círculo de amizades que lhe proporcionava uma vida social com atividades freqüentes e tão intensa quando ele desejasse, já que dos convites que recebia
não aceitava grande parte.
Uma pessoa querida pelos amigos, que promovia
churrascos e comemorações. O carinho cada vez mais explícito, dos
amigos, durante todo tempo em que a doença evoluía foi comovente. As
manifestações e presenças dos amigos e vizinhos só não foram mais freqüentes
pela absoluta incapacidade do pai em lidar com os próprios sentimentos.
Esses
fatos, que ele passou a testemunhar, mostravam que o pai era uma
pessoa que conquistara a amizade, o carinho e o respeito de muita gente ao seu
redor.
Então
porque o pai não fora assim com ele?
Estava
longe de ser um bom pai. Toda a vida lhe veio à cabeça. Decididamente,
sentimento de culpa ele não tinha nenhum. Tinha motivos. Sérios.
Decidiu não tentar mais entender os motivos que o estavam levando a agir daquela
forma inesperada e surpreendente para ele mesmo. Um carinho que ele não sabia de onde estava brotando. Algo diferente e desconhecido
assumira o controle de suas ações.
Passou
a se interessar, acompanhar, ajudar e incentivar o pai diariamente, dedicando
um carinho que ele não acreditava que ainda pudesse existir naquela relação. O
pai lhe devolvia na mesma moeda, do seu jeito. Evitando a emoção. Mas,
mostrando amor e carinho como nunca demonstrara.
E
foi assim pelos 10 meses seguintes, até aquela noite no quarto do hospital, no
qual ele havia sido internado pela última vez, depois de dezenas de indas e vindas.
Estavam
todos os filhos e a mãe. Como faziam todos os dias, desde essa última
internação. Antes dos filhos irem embora à noite, se reuniam em volta da cama do pai
numa ordem que aconteceu espontaneamente e que se repetia por esses meses: a
mãe de mãos dadas com a mão direita do pai deitado, um irmão com a mão postada
sobre um tornozelo e o outro irmão no outro. A irmã fechava o círculo segurando
a mão esquerda, e dessa forma o envolviam num círculo para rezar o pai nosso que ele
gostava.
Nessa
noite, a doença avançava para seu desfecho e o pai já não falava. Ele estava ao
lado perto da mão esquerda. O pai segurou-lhe a mão, olhou para ele e a
apertou. Ele entendeu que o pai queria rezar e chamou os outros. Chamou também a irmã para que ocupasse seu lugar na mão esquerda.
Nesse
momento, o pai levantou levemente o braço e segurou-lhe a mão, apertando-a tão
forte quanto pode, deixando claro que queria que ele ficasse ali, de mãos dadas,
naquela que seria a sua última reza.
Rezaram
juntos, e durante todo aquele intenso momento o pai não afrouxou aquele aperto
na mão nem por um segundo.
Ele
entendeu com toda a clareza e profundidade aquele último gesto e sentiu-se em
paz quando, oito horas depois, presenciou o pai expirar pela última vez.
Ele
finalmente compreendeu porque não se mudara daquela casa e, também, porque seu
pai nunca o mandara embora: apesar de não terem nenhuma interação, estarem sob
o mesmo teto foi a única maneira, intuitiva, que pai e filho encontraram para não se
perderem para sempre.