ORIENTADOR LITERÁRIO
MEU AMIGO QUE VOAVA
Uma
pessoa aberta a novos pensamentos. Adorava uma novidade. Um desbravador. Sempre que ouvia
falar em algum lugar novo, fora do “circuito descolado”, punha-se a caminho
para conhecer. De moto, de Kombi ou de Brucutu, um carro equivalente a um Off Road, adaptado por ele nos anos 90 do século 20.
Morador
do Leblon, depois Ipanema, curiosamente era a montanha e não a praia, que o
seduzia. Não era morar na montanha, a onda dele era saltar lá de cima. E Lá em
cima ele encontrou sua praia. E decidiu passar o resto da vida voando. E
passou.
Quando descobriu que podia ter asas, demitiu-se do cargo de engenheiro civil no funcionalismo público, que lhe remunerava muito bem e lhe oferecia estabilidade, para fazer vôos duplos de parapente, em São Conrado, no Rio de Janeiro que tanto amava.
Foi
feliz. Viajou e se aventurou, como gostava, para voar em lugares inusitados.
Coisas do Bode. Bode não, Carlinhos. Que Carlinhos? O Bode.
Teve a vida cheia de altos vôos e soube fazer suas escolhas valerem à pena. Conservou, até o fim, a mesma curiosidade adolescente, a mesma alegria ingênua e espontânea. Era capaz de rir e de fazer piadas nos momentos mais difíceis que enfrentou.
Um aventureiro, corajoso por natureza. Amigo por vocação. Sempre teve muitos porque sabia ser um amigo dos grandes. Daqueles que a gente pode contar e ligar no meio da madrugada, fosse para chorar ou para comemorar.
No imaginário popular, não devemos contar nossas expectativas antes que se realizem, para não despertar olho gordo. Mas, para mim, ele dava sorte. Todas as vezes que estava esperando o desfecho de alguma situação, uma resposta importante, contava para ele. Sempre me deu sorte.
As
muitas décadas que convivemos, me deram a honra conhecer um ser humano
autêntico e admirável. Um dos momentos mais significativos de nossa amizade, é a
satisfação de ter podido expressar, com todas as letras, pessoalmente, o meu
amor e a minha admiração para com esse irmão que cativou minha alma com sua
essência cheia de bondade.
A ausência já não machuca tanto depois de tantos anos. Mas, nunca vou deixar de sentir saudades.
Ao mesmo tempo, tenho muita alegria de ter convivido com esse amigo que me ensinou que era possível voar.
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AMANTES
O toque acendeu o sol,
Dois sóis,
Quentes, atraentes, penetrantes,
Somando-se num calor ardente, pendente, arfante
Pele, seda, almas sussurrantes,
Atraindo-se, exalando seus perfumes provocantes,
Fêmea nua, natureza dominante
A carne quente, úmida, envolvente,
Sugando, atraindo, desejando urgente,
Acordando o desejo de se completar inteira,
Em cada poro, em cada arfar, em cada instante
Teu ar, meu ar, arfantes,
dentro, fora,
Inebriantes,
Somos insanos, alucinados, delirantes,
Cabendo juntos no mesmo universo latejante,
Somos a vida, somos amor, somos amantes.
Edmir Saint-Clair
NO ÚLTIMO MOMENTO
Olhou
o celular para ver às horas, 05h00min da manhã. Há anos seus pais não acordavam a
essa hora. Só faziam isso quando iam viajar ou fazer exames médicos. Era janeiro, pouco
depois do ano novo, tanto uma coisa quanto a outra eram plenamente viáveis.
Voltou a dormir.
Acordou, novamente, às 11 da manhã. Seu trabalho lhe permitia escolher seus horários. Havia um incomodo no ar, algo estranho.
Ainda tomando café, foi até o quarto dos pais. Nada indicava
que tivessem viajado. Ao contrário, o desarrumado incomum do quarto não parecia normal. Seria pouco provável que seu pai viajasse deixando portas de armário
abertas e a cama do casal desfeita. Estranho, mas poderiam estar atrasados e não
tiveram opção a não ser deixar tudo do jeito que estava.
A noite chegou e alguma coisa continuava estranha. Pouco depois das 10h da noite, recebeu um telefonema da sobrinha avisando que o avô estava no hospital, internado no CTI. Ficaria lá por alguns dias e não tinha previsão de alta.
A sobrinha lhe contou que avô/pai tivera um acúmulo bastante severo de liquido na cavidade torácica, o que provocou uma
violenta compressão no coração e pulmões, pressionando-lhes perigosamente.
− O
Senhor deve estar se sentindo muito mal, uma sensação de sufocamento. Seu
coração está tão pressionado que mal consegue bater. Vamos resolver isso, fique
calmo. Disse a médica visivelmente preocupada. Exclamou a primeira médica que o atendeu.
O
pai foi submetido aos cuidados emergenciais necessários, lhe drenaram o líquido
descomprimindo os órgãos e aliviando o estado geral. Ficaria no CTI, visitas somente alguns dias depois.
Os irmãos já haviam chegado de suas cidades atuais e estavam todos aguardando na ante-sala de entrada para os leitos no amplo salão do centro de tratamento intensivo, onde ficavam os boxes e seus respectivos pacientes. Um Centro de Terapia Intensiva de grande porte. O médico veio conversar com a família, a mãe ficou lá dentro, ao lado do pai, no leito.
Nesses dias em que o pai está no CTI, a mãe ficou no quarto normal do hospital que está reservado para ele. O evento havia sido gravíssimo e poderia tê-lo morto não fosse pela condição excepcional de saúde que sempre gozara. Se seu coração não fosse tão forte, não teria resistido. Sua saúde sempre fora invejável e motivo de orgulho próprio, mesmo aos 79 anos.
Agora,
ali naquele CTI, parecia totalmente abatido. Ele nunca vira o pai daquele
jeito, tão fraco e frágil. Pelo lado de fora da janela de vidro que dá
acesso aos leitos, ele pode vê-lo sem que o pai pudesse vê-lo de volta. Sentiu
uma compaixão intensa, profunda e surpreendente. Também sentiu pena.
Não
trocavam palavra há 20 anos. Mas, não se entendiam desde muito antes, do início
da adolescência. Na verdade, nunca se deram bem. Ele nem se lembra mais desde quando.
Uma relação conflituosa e problemática, que fora piorando, paulatinamente, conforme o tempo foi
passando.
Uma
relação pai e filho presume boas experiências juntos, é uma relação que marca
e determina profundamente nossos destinos. Nesse caso, essa relação nunca
aconteceu. Desde muito cedo, um muro foi se erguendo, tijolo a tijolo, até parecer intransponível. Uma sucessão de erros mútuos que determinaram o rumo de uma relação
que, só começou a parar de piorar, a partir do momento em que ele deixou de
dirigir a palavra e de sequer fazer menção de ter ouvido quando o pai se
dirigia a ele.
Com
o tempo, o pai também não se dirigia mais a ele. Sua mãe era a porta-voz dos dois.
Aquilo fora necessário para interromper aquela tensão cada vez mais
insuportável. Com a aquiescência da mãe, a partir desse silêncio, a princípio
unilateral, hoje reinante, a tensão se dissipara.
O silêncio e a ausência total de interação entre os dois trouxe uma paz que jamais haviam experimentado na convivência.
Não havia discórdia, não havia cobranças. Não havia nada além das presenças
físicas quando transitavam em silêncio pelo longo corredor, eventualmente, na sala
ou na cozinha. Silenciosos e ignorando a presença do outro. Há tempos não se
respeitavam tanto. Nunca a relação dos dois fora tão pacífica e tranqüila.
A
sensação de paz o levou a evitar cada vez mais cruzar com o pai. O amplo apartamento
facilitava a missão. Só saía do quarto pela manhã para o trabalho
e voltava pelas dez da noite entrando direto para o quarto. A partir desse
horário, era ainda mais tranquilo, o pai era desses que dormem e acordam cedo. Ele, exatamente o oposto. Os horários se encaixavam perfeitamente. Não era raro passarem dias sem que
se vissem.
O
mais estranho. É que ele voltara a morar na casa dos pais após a última
separação, a princípio por algum tempo apenas, já aos quarenta anos. Acontece
que o tempo foi passando e prolongou-se por 10 anos até desaguar naquele
momento.
Ele
sempre se sentira com motivos de sobra para não falar com o pai há tanto tempo.
Sua mãe concordava com a atitude, por ela, ele já deveria ter parado de falar até antes. Era estranho
que não tivesse saído da casa há tempos. Tinha condições financeiras para isso, não havia porque sustentar aquela situação esdrúxula.
O
fato é que, desde aquele dia até hoje, havia se passado 20 anos. Imediatamente, ele deteve aquele raciocínio e
deixou-se levar apenas pela intuição e pela emoção. Estava confuso. A
proximidade da morte de uma pessoa que sempre lhe parecera imortal era muito
complicada. Ele não sabia como reagir. Não pensou em perdão ou qualquer coisa
parecida. Tinha muitos problemas com essa palavra. Não pensou. Fez.
Em
alguns dias, o pai havia ido para um quarto espaçoso e confortável de um bom
hospital particular e todos os filhos, inclusive os que moravam fora do Rio,
estavam na casa da família onde todos cresceram juntos. O clima era de muita apreensão, mas
com muito carinho entre os irmãos que se apoiavam mutuamente.
Pela
manhã, chegou o resultado da biópsia: câncer no pulmão, estágio III de IV.
Quando
se viu sozinho, pela primeira vez, desde que soube do resultado, surpreendeu-se
com a própria serenidade. Apesar de chocado, impactado pelo inesperado, estava
estranhamente sereno. Muito, pelo imponderável da situação. O pai sempre fora
forte levava uma vida confortável, sem preocupações e sua única atividade
diária obrigatória era jogar vôlei com os amigos na praia. Fazia check-ups
periódicos com uma regularidade elogiável.
Ele não tinha dúvidas de que os pais se divertiam quando saíam para fazer exames. Estavam sempre repetindo o
programa.
O pai tinha o mesmo bronzeado em qualquer época do ano. Aposentado e com uma vida tranqüila e bem amparada, fruto de seu trabalho, se tornara uma pessoa que mudara o comportamento nos últimos anos. Tornara-se um homem mais sociável, bem humorado e com um círculo de amizades que lhe proporcionava uma vida social com atividades freqüentes e tão intensa quando ele desejasse, já que dos convites que recebia não aceitava grande parte.
Uma pessoa querida pelos amigos, que promovia churrascos e comemorações. O carinho cada vez mais explícito, dos amigos, durante todo tempo em que a doença evoluía foi comovente. As manifestações e presenças dos amigos e vizinhos só não foram mais freqüentes pela absoluta incapacidade do pai em lidar com os próprios sentimentos.
Esses fatos, que ele passou a testemunhar, mostravam que o pai era uma pessoa que conquistara a amizade, o carinho e o respeito de muita gente ao seu redor.
Então
porque o pai não fora assim com ele?
Estava
longe de ser um bom pai. Toda a vida lhe veio à cabeça. Decididamente,
sentimento de culpa ele não tinha nenhum. Tinha motivos. Sérios.
Decidiu não tentar mais entender os motivos que o estavam levando a agir daquela
forma inesperada e surpreendente para ele mesmo. Um carinho que ele não sabia de onde estava brotando. Algo diferente e desconhecido
assumira o controle de suas ações.
Passou
a se interessar, acompanhar, ajudar e incentivar o pai diariamente, dedicando
um carinho que ele não acreditava que ainda pudesse existir naquela relação. O
pai lhe devolvia na mesma moeda, do seu jeito. Evitando a emoção. Mas,
mostrando amor e carinho como nunca demonstrara.
E
foi assim pelos 10 meses seguintes, até aquela noite no quarto do hospital, no
qual ele havia sido internado pela última vez, depois de dezenas de indas e vindas.
Estavam
todos os filhos e a mãe. Como faziam todos os dias, desde essa última
internação. Antes dos filhos irem embora à noite, se reuniam em volta da cama do pai
numa ordem que aconteceu espontaneamente e que se repetia por esses meses: a
mãe de mãos dadas com a mão direita do pai deitado, um irmão com a mão postada
sobre um tornozelo e o outro irmão no outro. A irmã fechava o círculo segurando
a mão esquerda, e dessa forma o envolviam num círculo para rezar o pai nosso que ele
gostava.
Nessa noite, a doença avançava para seu desfecho e o pai já não falava. Ele estava ao lado perto da mão esquerda. O pai segurou-lhe a mão, olhou para ele e a apertou. Ele entendeu que o pai queria rezar e chamou os outros. Chamou também a irmã para que ocupasse seu lugar na mão esquerda.
Nesse
momento, o pai levantou levemente o braço e segurou-lhe a mão, apertando-a tão
forte quanto pode, deixando claro que queria que ele ficasse ali, de mãos dadas,
naquela que seria a sua última reza.
Rezaram
juntos, e durante todo aquele intenso momento o pai não afrouxou aquele aperto
na mão nem por um segundo.
Ele
entendeu com toda a clareza e profundidade aquele último gesto e sentiu-se em
paz quando, oito horas depois, presenciou o pai expirar pela última vez.
Ele
finalmente compreendeu porque não se mudara daquela casa e, também, porque seu
pai nunca o mandara embora: apesar de não terem nenhuma interação, estarem sob
o mesmo teto foi a única maneira, intuitiva, que pai e filho encontraram para não se
perderem para sempre.
O
choro foi triste, mas foi leve.
Houve beleza no final daquela história.
Finalmente, pai e filho estavam em paz.
- Edmir Saint-Clair
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