A ansiedade era grande. Não via o filho há tempo demais. Saudade apertando, mais ainda quando faltam poucas horas para revê-lo. Diego não quis que Felipe fosse pegá-lo no aeroporto por conta da falta de previsão de tempo nas esperas entre conexões. Estava vindo de Beijing, depois de cinco anos na China.
Felipe resolveu descansar um
pouco, a ansiedade desses últimos dias havia sido desgastante. Deitou-se no
sofá da sala e adormeceu. Passara a noite acordado, ansioso, pensando na volta
do filho. Agora, cedia ao cansaço.
A campainha toca
insistentemente. Ele levanta assustado e, ato reflexo, corre para a porta.
O antigo relógio de pendulo
da sala, herança do avô, marca 8h e 06m da manhã. Abre a porta.
− Diego... Dá um abraço
filhão...
Diego abraça o pai com força
e saudade iguais e intensas. Um abraço longo, aconchegante e familiar. Pai e
filho que se querem tão bem quanto é possível. Surfistas, rubro-negros e
cariocas. Um extenso rol de afinidades. Amor.
Felipe pega uma das malas
enquanto o filho às outras. Pelo volume da bagagem, veio de vez. Tomara,
pensou.
Vôos internacionais sempre
chegam cedo pela manhã. A tempo de aproveitarem e brincar um pouco nas ondas do
final do Leblon. Felipe mostra a Diego a prancha que mandou fazer de presente
para o filho.
Diego fica emocionado com a
recepção e o carinho do pai, e lhe dá mais um daquele demorado e saudoso
abraço. Tem orgulho do pai. A felicidade dos dois é transbordante. Aqueles
momentos em que o sorriso não sai do rosto e parece que nunca vai sair. Olhar
para o outro alimenta ambos os sorrisos. E o silêncio completa.
− Ele é meu filho. Pensou.
− Ele é meu pai. Pensou o
filho no mesmo exato milésimo daquele silêncio sagrado. Certas emoções são
grandes demais, não cabem em palavras.
A felicidade acontecia
explicitamente naquele momento, pai e filho desfrutando a plenitude da presença
do outro.
Combinaram que Diego ia
dormir um pouco, viajara mais de 30 horas. Estava exausto.
Felipe deu um beijo na testa
do filho e saiu do quarto.
Diego não acordaria antes
das 14h, ele tinha 6 horas pela frente. Seria bom almoçarem em casa para que
Diego pudesse acordar com calma e sem pressa. Lembrou-se da feijoada de sábado
do Degrau que sempre comeram desde que o filho era pequeno e ainda não gostava. Depois da separação, a feijoada tinha se
tornado programa obrigatório dos dois. É a pedida perfeita para hoje.
Ele volta até a porta do
quarto do filho. Mas não a abre. É só a alegria que não está cabendo.
Uma feijoada e depois uma
boa remada no mar de final de tarde de outono. A luz mais bonita do Rio de
Janeiro.
Seria perfeito se tivéssemos
um baseado para fumar antes do surf. Há anos não fumava. Fumar um baseado com o
filho tem um significado especial. Não é um consumo de drogas doentio. É um
ritual. O preconceito é uma lente mal construída que torna tudo mais feio. Uma
lente de enfeiar o mundo.
Havia algum tempo que Felipe
não comprava maconha, e tinha perdido o contato com os eventuais fornecedores
do bairro. Geralmente, uma meia dúzia de amigos, moradores do Leblon mesmo, que
vendem para amigos. Ou, a velha opção da
vida toda, a doleta da Cruzada. Pequenas quantidades, geralmente um cigarro,
vendido a varejo. Nessa altura do fim de semana, se quisesse fumar um baseado
antes da praia com o filho, teria que recorrer à Cruzada. Tudo bem, ali é
tranqüilo, pensou. Riu sozinho, a última vez que foi na Cruzada comprar um
baseado deve ter sido há, pelo menos, uns 25 anos atrás.
Diego voltou três dias antes
de completar 30 anos. Um adulto, profissional com formação altamente
especializada. Apesar de sempre ter tido um quarto na casa do pai, não importa
com quem o pai estivesse casado, só haviam morado juntos nos primeiros dois
anos da vida dele. Época da qual, obviamente, não se lembrava. Depois, eram
fins de semana, férias e feriados, como todo pai separado. Pouco antes de
viajar para a China, passaram onze meses juntos. O maior tempo que passaram até
então. Os melhores também.
Felipe mora Rua Padre
Achotegui, na Selva de Pedra. A Cruzada fica a um quarteirão. Antes, resolve
passar no Degrau e deixar a feijoada reservada para viagem, e garantir que nada
saísse errado. A feijoada de sábado do Degrau é concorrida no bairro e costuma
acabar cedo. A idéia é, em vez de saírem para comê-la no restaurante, ele a
servirá em casa, para que Diego acorde com toda calma e a coma na maior
preguiça que conseguir.
Já na praia, depois de
passar no Degrau, Felipe percebe que está ansioso e atribui à excitação pela
chegada do filho. Ele já chegou, mas ele anseia por conversarem e, realmente,
se reencontrarem. O que o intriga é que ele não costuma ficar ansioso nessas
ocasiões. Pensava já ter vencido esse fantasma. Considerava-se uma pessoa
bastante calma. Uma chopinho no Clipper iria afastar aquela sensação estranha,
com certeza. Onze da manhã de sábado, há essa hora é certo que não iria beber
sozinho.
• * * *
Diego não conseguia parar de
se mexer na cama, inquieto. Acordou incomodado, achou que fosse o frio do ar
condicionado e se cobriu mais. Olhou a hora no celular, 11 horas da manhã.
Dormira apenas 3 horas... Isso não costumava acontecer. Geralmente, dormia 6
horas ininterruptas de um sono calmo. Sempre agradecia mentalmente o pai tê-lo
introduzido na prática da meditação desde cedo. Atribuía a isso sua calma e
equilíbrio. Mas, não naquele momento. Ainda cansado e sem conseguir adormecer
novamente, sentia uma sensação estranha, ansiedade. Rolou na cama até o cansaço
vencer. Adormeceu. Mas, o sono não seria
repousante.
• * * *
Felipe terminou o segundo
chope, a conversa com amigos da vida toda, sobre a chegada de Diego, é lógico,
fizera o tempo passar mais leve. Mas, nem tanto. Enquanto esperava a conta, deu
tempo de sentir-se estranho de novo, ansioso, tenso. Ele não era assim, nunca
fora e não havia motivo para sê-lo naquele momento. Menos mal, o tempo passara e o relógio marcou meio-dia em ponto. Hora de passar na Cruzada. Despediu-se e partiu.
• * * *
Diego acorda sobressaltado
de um sono rápido e agitado. Olha o celular, meio-dia. É certo que não
conseguiria mais dormir, e ficar na cama seria pior. Atribuiu a angústia à
excitação da chegada, ao fuso horário e a tudo junto, pensou. Não estava
acostumado a sentir aquela inquietação interna remexendo seu estômago. Não
estava acostumado a sentir a sensação de ansiedade, sem motivo, sem sentido.
Detestava se sentir confuso. Havia algo diferente e errado.
• * * *
Felipe atravessou a Ataulfo
de Paiva e seguiu descendo a Carlos Góes na direção da Selva de Pedra. Virou à
direita na Humberto de Campos e seguiu na direção da Cruzada. Quando parou no cruzamento com a Av. Afrânio
de Melo Franco, notou que a porta da Delegacia estava movimentada. Nunca se preocupara
com isso, não seria hoje... Pensou.
O sinal abriu e ele
atravessou. Chegando esquina oposta, viu Adilson acenando e saindo da Igreja
Santos Anjos, ele acenou de volta. São amigos desde pequenos, jogaram juntos no
time de futebol de praia e muitas peladas no Condomínio dos Jornalistas.
Distanciaram-se quando chegaram à vida adulta. Hoje, Felipe é arquiteto e
Adilson motorista numa empresa estatal. Tem estabilidade no emprego e continua
a morar na Cruzada, no apartamento que herdara dos pais. Apesar de ter tido
amigos ali, Felipe entrara poucas vezes naquela comunidade. No Leblon,
geralmente, algum desses amigos que moravam lá, pegavam os baseados para os
outros que não moravam. Faziam “um vôo pros amigos”. Sempre foi assim.
A certa altura de uma conversa
formal, Felipe pergunta se Adilson poderia pegar uma Doleta. A reação foi
inesperada.
Adilson mostrou-se
visivelmente contrariado. Por certo momento, ofendido.
− Felipe, sempre achei você
um cara legal. Gosto de você... Temos quase 50 anos, nunca mais me peça isso.
Nossas vidas são muito diferentes. Vamos guardar as boas lembranças. O tempo
passou. Não tenho nada a ver com drogas, nem quero ter.
O constrangimento mútuo foi
bastante incomodo. Os dois se conheciam desde pequenos. Naquele instante, uma
distância nunca antes percebida deu-lhes um tapa na cara. A distância que
sempre fingimos que não existia, como todos no Leblon, se escancarou ali na
esquina da Igreja Santos Anjos.
Deram-se um aperto de mão e
Adilson pôs-se a caminhar na direção de sua casa, a Cruzada.
Felipe demorou alguns
minutos tentando compreender o que ocorrera. Ficou parado, na esquina, olhando
Adilson que já ia vários metros à frente. Sentiu-se envergonhado. Mas, não
sabia ao certo por que.
Recuperou-se quando lembrou
que Diego o estava esperando. Teria que entrar na Cruzada para comprar. Voltou
a caminhar, cuidando para não ir nem rápido, nem devagar demais. Normal. Não
estava acostumado. Estava se sentindo agoniado, lamentava ter ofendido o amigo,
mesmo que involuntariamente.
Estava passando em frente à
portaria dos fundos da AABB quando viu as primeiras pessoas correndo. Em
seguida, ouviu dois ou três tiros que ele não soube precisar de que direção
vinham. Não sabia que lado deveria proteger. Ouviu sirenes e barulho de
carros vindos da direção da delegacia, os tiros aumentaram de intensidade. Percebeu que estava no meio do fogo cruzado. Imediatamente, sentiu algo
rasgando e queimando sua barriga, uma dor profunda e o sangue quente jorrando e
molhando-lhe os órgãos genitais e as pernas. Caiu com as mãos na barriga e a
dor arrancou-lhe um gemido alto. Como se uma flecha de aço em brasa o tivesse
penetrado fundo.
Arrastou-se até um pilotis
mais próximo. Era tudo que podia fazer naquele momento. Era surreal. Choro de
crianças e gritos vindos de todas as direções. Os tiros continuavam, era
desesperador sentir o sangue escorrer e nenhuma possibilidade de socorro.
Pensou no filho e doeu-lhe a alma. Não podia morrer ali. Não hoje. Os tiros
continuavam.
• * * *
Diego adorava os requintes
aos quais o pai se dedicava. Um bom café é um deles. Uma cafeteira de Expresso
Italiano sempre com dezenas de opções e variedades de grãos de café que ele
moía na hora.
O café estava excelente, mas
a ansiedade aumentara. Virou a xícara impaciente, sem degustar. Arrumou-se e
resolveu descer até rua. Aquela inquietação desconhecida era agoniante. Por
quê? A falta de causalidade aumentava ainda mais a angústia de alguém tão
acostumado ao mundo de causa-efeito.
Diego salta do elevador e da
portaria já ouve o barulho de algumas sirenes passando. A sensação de quem tem
algo errado é cada vez mais intensa.
• * * *
Felipe tenta manter a
respiração sob controle enquanto pressiona o ferimento que continua sangrando,
empoçando na laje da rua. Felipe sente que está enfraquecendo, sente medo.
Tenta manter a clareza. Pensar. Os tiros parecem que pararam. Adilson é o
primeiro a aparecer na sua frente.
− Puta que pariu! Que merda
meu véio! , gritou Adilson assustado, enquanto digitava o celular chamando o
SAMU. Ali na Cruzada todos tem o número desse telefone. Após a ligação, Adilson
agacha-se ao lado de Felipe que já está bastante pálido. O tiro era de grosso
calibre e atingira o lado direito do abdômen. A hemorragia era grande.
Felipe falou com a voz enfraquecida:
− Adilson, por favor, avisa
meu filho.
− Você ainda mora na Rua
Padre Achotegui?
Felipe confirmou com um
movimento de cabeça. Percebeu que Adilson estava chorando. Isso não era um bom
sinal.
Adilson arrancou um pingente
do pescoço e partiu a medalha em dois:
− Fica com isso na mão e
pede pela sua vida. Do jeito que você souber rezar. Pra São Jorge de Ogum. Vou
dar a outra metade pro Diego.
Apenas percebeu quando os
enfermeiros abriram espaço e o colocaram na maca. Tudo parecia nebuloso e
distante. Os sons e vozes tinham eco. Os paramédicos fizeram alguns
procedimentos ali mesmo. Ainda deu tempo de reforçar o pedido a Adilson.
Felipe apertou a metade da
medalha nas mãos e começou rezar do jeito que ainda se lembrava.
Os solavancos da maca sendo
encaixada na ambulância fazem com que a dor volte intensa, mas ele solta apenas
um leve gemido. Ele percebe que os paramédicos estão sérios e concentrados.
Apesar do tubo de oxigênio, sua respiração está acelerada e irregular. Ele
tenta ficar acordado, mas as vozes e os ruídos se tornam cada vez mais
distantes. Aperta a metade da medalha e faz força para coordenar os pensamentos
tentando rezar. Não consegue mais manter a consciência. Sente literalmente a
vida se esvaindo até desfalecer.
• * * *
Em poucos minutos vários
moradores já estavam na rua, é sempre assim quando acontece alguma coisa
extraordinária nessa parte do Leblon. A Selva de Pedra tem um jeito próprio de
ser. Diego continuava cada vez mais ansioso e angustiado. Tentando entender
algo daquela agitação, recebe uma explicação do porteiro do seu prédio. Troca
de tiros na Cruzada com um baleado grave.
Diego sentiu um calafrio
percorrer sua coluna como um bisturi gelado cortando suas costas. Percebeu um
homem caminhando a passos rápidos vindo da praça na direção de sua portaria e o
reconhece. É Adilson, amigo do pai que jogou futebol de praia com ele e morava
na... Cruzada São Sebastião!
Sentiu as pernas se curvarem
sem forças. Não podia ser. Mas, quanto mais Adilson chegava perto, mais seu
olhar deixava claro quem era o baleado. Mas, Não fazia sentido!
Adilson conhecera Diego
desde que este nascera.
Chegou perto e o tirou da
presença de outras pessoas.
− Diego, seu pai foi
baleado. Está indo pro Hospital Miguel Couto e pediu pra você ir para lá. Eu
vou com você. Mas, antes ele pediu pra você pegar os documentos dele que estão
na mesinha de cabeceira.
− É grave? Perguntou Diego.
− Estava sangrando muito,
mas os paramédicos não falaram nada.
Adilson toca o ombro de
Diego antes que ele saísse em direção à portaria para pegar os documentos. Tira
a outra metade da medalha de São Jorge de Ogum e a entrega a Diego.
− Fica com isso na mão e
pede pela vida do seu pai. Reza do jeito que você souber rezar. Para São Jorge
de Ogum. A outra metade está com o Felipe. Agora vai, começa a rezar desde
agora.
Diego está em estado de
choque e procede como um robô, agindo mecanicamente. Ele não sabe rezar. Nunca
aprendeu, nunca o ensinaram. Mas, a necessidade é a mãe de todas as invenções e
ele pede a São Jorge de Ogum, com todas as forças e com a fé que nunca soubera
ter. O elevador chega. Ele entra, toca o número de seu andar e volta para sua
reza improvisada, mas cheia de fé. Fecha os olhos e imagina o pai sorrindo como
há algumas horas atrás. Consegue sentir literalmente o abraço que se deram. Sua
alma se acalmou, estranhamente, se acalmou. Quando abriu os olhos, ainda estava
no segundo de dez andares. Parecia haver passado muito mais tempo. Abriu a mão
e a metade da medalha havia marcado sua palma, tamanha a força com a qual a
apertara.
O elevador chegou ao andar e
ele abriu a porta. Quando saiu da cabine e olhou para a porta do apartamento de
seu pai tomou um sustou que quase o derrubou. Suas malas estavam na porta. Ele
se olhou e estava com a mesma roupa de quando chegara pela manhã. O que era
aquilo?
A única coisa que ainda
estava ali era a metade da medalha, em sua mão marcada. Mas, não tinha tempo a
perder, depois pensaria naquilo. Seu pai estava morrendo no hospital e
precisava dele. Buscou a chave do apartamento no bolso e não a encontrou. As
suas malas ali na porta eram desconcertantes. Por impulso, tocou a campainha e
ouviu movimentos vindos do outro lado da porta. Tocou de novo. Ouviu o barulho
da fechadura sendo aberta e, nesses infinitos milésimos de segundos, desejou o
impossível. A porta se abriu e Felipe aparece com a cara mais assustada que ele
já havia visto. Os dois se abraçam e choram. Cada um com a sua metade da
medalha de São Jorge de Ogum na mão.
O antigo relógio de pendulo
da sala, herança do avô, marca 8h e 06m daquela manhã, pela segunda vez no mesmo dia.
Apenas abriram as mãos,
ambos, e mostraram para o outro a sua metade da medalha. Não falaram nada.
Nunca mais tocaram no assunto. Tinham medo. Nunca mais encontraram ou souberam
notícias do Adilson.
- Edmir Saint-Clair
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