A depressão o
havia consumido por meses, transformando seu mundo em uma névoa cinza e
opressiva. Tudo mudou naquela noite em que sonhou com Clarinha, sua primeira
paixão, a menina de cabelos cacheados e sorriso contagiante que o fazia sorrir
até nos dias mais sombrios de sua infância.
No dia seguinte,
ele acordou com uma sensação diferente. A campainha tocou, e quando Noah abriu
a porta, seu coração quase parou. Era Clarinha, tão linda quanto ele se
lembrava, apesar de terem se conhecido aos 9 anos, ela conservava o mesmo
sorriso e os olhos puxadinhos.
Pouco
conversaram, a despeito dos vinte anos que separava a remota lembrança, a
paixão que os invadiu foi tão intensa e mútua que a partir daquele momento se
jogaram em um relacionamento tão intenso que beirava a irracionalidade. A
partir do momento em que ela entrara naquele apartamento, simplesmente não
saíra mais de sua vida. E Noah desejava que ela nunca mais saísse. No entanto, Clarinha
impôs uma condição: ninguém poderia saber sobre ela e o relacionamento deles.
Clarinha sempre cheirava a algo suave e inebriante, um perfume que
parecia flutuar pelo apartamento de Noah, mesmo quando ela não estava presente.
Staël, sua irmã, notou isso imediatamente quando visitou seu apartamento. O
cheiro era tão forte que ela não pôde deixar de perguntar a Noah se ele havia
começado a namorar alguém.
Ele não
respondeu.
Quando estava
indo embora, andando pelo corredor até o elevador, ela encontrou um chaveiro
com o nome do irmão e uma chave, que parecia ser do apartamento de Noah. Para
não incomodar mais o irmão e decidida a não fazer perguntas, ela guardou a
chave em sua bolsa, sem dar muita atenção ao fato. No próximo encontro
devolveria a chave.
Noah começou a
desconfiar dos sumiços de Clarinha, que passava os dias fora de casa, só retornando
à noite, sempre deixando claro que não admitia perguntas.
Staël estava
cada vez mais preocupada com o comportamento errático do irmão. Era óbvio que
ele estava se relacionando com alguém que o estava absorvendo cada vez mais.
A tensão entre Noah
e Staël aumentou até que ele finalmente revelou a existência de Clarinha.
Staël lembrou-se
da menina que haviam conhecido na infância, uma menina mais velha que sempre
demonstrava uma afeição exagerada por Noah, e se mudara quando eles tinham por
volta de uns 11/12 anos. Ela se lembrava de como os dois eram fofos juntos, mas
não fazia ideia de como eles haviam se reencontrado depois de tantos anos.
Achou muito estranho quando soube que ela tinha simplesmente tocado a campainha
do apartamento do irmão ressurgindo do passado sem mais explicações.
Quando Noah
contou a Clarinha que havia revelado seu segredo a Staël, a reação dela foi
inesperada e desproporcional. Ela saiu correndo, desaparecendo pelo corredor
como se fosse uma sombra. A partir daquela noite, Clarinha não apareceu mais,
deixando Noah mergulhado em uma profunda depressão.
Staël, cada vez mais preocupada com o irmão, decidiu ajudá-lo a encontrar
Clarinha.
Através das
mídias sociais, conseguiu entrar em contato com uma amiga daquela época que lhe
conseguiu o contato da irmã mais nova de Clarinha, ressaltando que não tinha
contato e nem notícias de como estariam atualmente. Staël passou à noite
inteira no notebook pesquisando todas as pistas possíveis.
Enquanto isso,
em sua casa, Noah sentiu o celular vibrar. Era Clarinha, falando objetivamente
e sem rodeios:
- Se você quiser
ficar comigo, deve deixar tudo para trás e vir me encontrar.
Sem pensar, Noah
escreveu uma longa carta para Staël explicando tudo e saiu, determinado a
seguir Clarinha.
No dia seguinte, Staël tocou a campainha do apartamento de Noah, mas não
obteve resposta. Preocupada, ela usou a chave que encontrara anteriormente no
corredor e entrou. No quarto, encontrou a carta de Noah, que detalhava todo o
relacionamento com Clarinha e sua decisão de ir embora com ela.
Conforme ia
lendo a carta, Staël ia ficando cada vez mais gelada.
Na bolsa, ela
tinha uma impressão de um jornal antigo, fruto de sua pesquisa na noite
anterior, datado de 20 anos atrás, cuja manchete dizia: "Menina de 12 anos
é encontrada morta em escola pública. "
Staël leu a
carta novamente, os olhos arregalados de horror. Clarinha havia morrido quando
era criança ainda. Como Noah poderia estar num relacionamento tão intenso e
avassalador com uma pessoa que não deveria existir mais.
A chave que
servia na porta do apartamento de Noah, o perfume constante, a insistência de Clarinha
em manter o relacionamento em segredo conforme o irmão lhe contara... Staël não
via lógica nenhuma naquilo. Será que Noah estava num surto psicótico e
imaginara tudo aquilo?
Mas havia algo
ainda mais perturbador. Quando Staël voltou para o apartamento, ela encontrou
outra carta, escondida entre os pertences de Noah. Essa era de alguém com letra
de criança que assinara Clarinha, e dizia:
"Eu sempre
estive mais perto do que você podia imaginar, Noah. Eu nunca deixei de amá-lo,
mesmo depois de partir. Nosso amor sempre foi eterno, você sempre foi meu. Agora,
é hora de você me seguir."
Staël teve um
pressentimento muito forte de que algo muito errado estava acontecendo e não
era de agora.
Foi até o
porteiro do prédio, que era bem antigo no serviço e conhecia muito bem tanto Noah
quanto ela. Perguntou se ele conhecia a nova namorada de Noah. O porteiro lhe
respondeu que havia muitos meses que não o via com ninguém e que ninguém o procurava
fazia tempo, confirmando o isolamento no qual o irmão vivia. Ela teve a ideia
de ver as gravações das câmeras de segurança do prédio. Qualquer imagem que
registrasse a saída ou entrada do irmão acompanhado de Clarinha bastaria para
aliviá-la de tantas dúvidas e angústias.
Após
rever as imagens dos últimos dez dias, o que durou horas mesmo em velocidade
triplicada, ela confirmou que nenhuma mulher, ou qualquer outra pessoa, havia
sequer passado pela porta do apartamento de Noah. Na última gravação em que o
irmão aparece, é saindo sozinho do apartamento, entrando no elevador onde desce
igualmente sozinho até a câmera do lado de fora do prédio registrar sua imagem
afastando-se do edifício.
Desde esse dia, ela
nunca mais soube do paradeiro do irmão.
Edmir Saint-Clair