ORIENTADOR LITERÁRIO
MISTÉRIO NO LEBLON
SEM EXPLICAÇÃO
A depressão o havia consumido por meses, transformando seu mundo em uma névoa cinza e opressiva. Tudo mudou naquela noite em que sonhou com Clarinha, sua primeira paixão, a menina de cabelos cacheados e sorriso contagiante que o fazia sorrir até nos dias mais sombrios de sua infância.
No dia seguinte, ele acordou com uma sensação diferente. A campainha tocou, e quando Noah abriu a porta, seu coração quase parou. Era Clarinha, tão linda quanto ele se lembrava, apesar de terem se conhecido aos 9 anos, ela conservava o mesmo sorriso e os olhos puxadinhos.
Pouco conversaram, a despeito dos vinte anos que separava a remota lembrança, a paixão que os invadiu foi tão intensa e mútua que a partir daquele momento se jogaram em um relacionamento tão intenso que beirava a irracionalidade. A partir do momento em que ela entrara naquele apartamento, simplesmente não saíra mais de sua vida. E Noah desejava que ela nunca mais saísse. No entanto, Clarinha impôs uma condição: ninguém poderia saber sobre ela e o relacionamento deles.
Clarinha sempre cheirava a algo suave e inebriante, um perfume que parecia flutuar pelo apartamento de Noah, mesmo quando ela não estava presente. Staël, sua irmã, notou isso imediatamente quando visitou seu apartamento. O cheiro era tão forte que ela não pôde deixar de perguntar a Noah se ele havia começado a namorar alguém.
Ele não respondeu.
Quando estava indo embora, andando pelo corredor até o elevador, ela encontrou um chaveiro com o nome do irmão e uma chave, que parecia ser do apartamento de Noah. Para não incomodar mais o irmão e decidida a não fazer perguntas, ela guardou a chave em sua bolsa, sem dar muita atenção ao fato. No próximo encontro devolveria a chave.
Noah começou a desconfiar dos sumiços de Clarinha, que passava os dias fora de casa, só retornando à noite, sempre deixando claro que não admitia perguntas.
Staël estava cada vez mais preocupada com o comportamento errático do irmão. Era óbvio que ele estava se relacionando com alguém que o estava absorvendo cada vez mais.
A tensão entre Noah e Staël aumentou até que ele finalmente revelou a existência de Clarinha.
Staël lembrou-se da menina que haviam conhecido na infância, uma menina mais velha que sempre demonstrava uma afeição exagerada por Noah, e se mudara quando eles tinham por volta de uns 11/12 anos. Ela se lembrava de como os dois eram fofos juntos, mas não fazia ideia de como eles haviam se reencontrado depois de tantos anos. Achou muito estranho quando soube que ela tinha simplesmente tocado a campainha do apartamento do irmão ressurgindo do passado sem mais explicações.
Quando Noah contou a Clarinha que havia revelado seu segredo a Staël, a reação dela foi inesperada e desproporcional. Ela saiu correndo, desaparecendo pelo corredor como se fosse uma sombra. A partir daquela noite, Clarinha não apareceu mais, deixando Noah mergulhado em uma profunda depressão.
Staël, cada vez mais preocupada com o irmão, decidiu ajudá-lo a encontrar Clarinha.
Através das mídias sociais, conseguiu entrar em contato com uma amiga daquela época que lhe conseguiu o contato da irmã mais nova de Clarinha, ressaltando que não tinha contato e nem notícias de como estariam atualmente. Staël passou à noite inteira no notebook pesquisando todas as pistas possíveis.
Enquanto isso, em sua casa, Noah sentiu o celular vibrar. Era Clarinha, falando objetivamente e sem rodeios:
- Se você quiser ficar comigo, deve deixar tudo para trás e vir me encontrar.
Sem pensar, Noah escreveu uma longa carta para Staël explicando tudo e saiu, determinado a seguir Clarinha.
No dia seguinte, Staël tocou a campainha do apartamento de Noah, mas não obteve resposta. Preocupada, ela usou a chave que encontrara anteriormente no corredor e entrou. No quarto, encontrou a carta de Noah, que detalhava todo o relacionamento com Clarinha e sua decisão de ir embora com ela.
Conforme ia lendo a carta, Staël ia ficando cada vez mais gelada.
Na bolsa, ela tinha uma impressão de um jornal antigo, fruto de sua pesquisa na noite anterior, datado de 20 anos atrás, cuja manchete dizia: "Menina de 12 anos é encontrada morta em escola pública. "
Staël leu a carta novamente, os olhos arregalados de horror. Clarinha havia morrido quando era criança ainda. Como Noah poderia estar num relacionamento tão intenso e avassalador com uma pessoa que não deveria existir mais.
A chave que servia na porta do apartamento de Noah, o perfume constante, a insistência de Clarinha em manter o relacionamento em segredo conforme o irmão lhe contara... Staël não via lógica nenhuma naquilo. Será que Noah estava num surto psicótico e imaginara tudo aquilo?
Mas havia algo ainda mais perturbador. Quando Staël voltou para o apartamento, ela encontrou outra carta, escondida entre os pertences de Noah. Essa era de alguém com letra de criança que assinara Clarinha, e dizia:
"Eu sempre estive mais perto do que você podia imaginar, Noah. Eu nunca deixei de amá-lo, mesmo depois de partir. Nosso amor sempre foi eterno, você sempre foi meu. Agora, é hora de você me seguir."
Staël teve um pressentimento muito forte de que algo muito errado estava acontecendo e não era de agora.
Foi até o porteiro do prédio, que era bem antigo no serviço e conhecia muito bem tanto Noah quanto ela. Perguntou se ele conhecia a nova namorada de Noah. O porteiro lhe respondeu que havia muitos meses que não o via com ninguém e que ninguém o procurava fazia tempo, confirmando o isolamento no qual o irmão vivia. Ela teve a ideia de ver as gravações das câmeras de segurança do prédio. Qualquer imagem que registrasse a saída ou entrada do irmão acompanhado de Clarinha bastaria para aliviá-la de tantas dúvidas e angústias.
Após rever as imagens dos últimos dez dias, o que durou horas mesmo em velocidade triplicada, ela confirmou que nenhuma mulher, ou qualquer outra pessoa, havia sequer passado pela porta do apartamento de Noah. Na última gravação em que o irmão aparece, é saindo sozinho do apartamento, entrando no elevador onde desce igualmente sozinho até a câmera do lado de fora do prédio registrar sua imagem afastando-se do edifício.
Desde esse dia, ela nunca mais soube do paradeiro do irmão.
Edmir Saint-ClairDIVINA PROVIDÊNCIA
Tudo que Neyla pensava naquele momento é o que falaria para o filho mais velho quando ele a visse com o olho e os lábios inchados.
Ela sabia o estado em que Maicon
ficaria quando visse o que seu pai fizera com ela novamente. Ele crescera
presenciando e sofrendo a mesma violência que a mãe desde que se entendia como
gente, e não aguentava mais. Desde a última sessão de pancadas, ele prometera a
mãe que daria um jeito naquele inferno.
Neyla lembrou-se de cada uma das palavras do filho, e um calafrio percorreu sua espinha de cima a baixo, como se alguém houvesse passado sobre seu túmulo, como diziam na comunidade. A caçulinha Raylane ainda estava com o gesso na perna como consequência da última vez em que Julião estivera na casa deles.
Ele vinha e ia embora quando
bem entendia, sem dar satisfação sobre o tempo que passara ausente.
Eles sabiam que eram a segunda família dele, a filial como os vizinhos a chamavam. Mas, agia como se tudo aquilo fosse a coisa mais normal do mundo. Quando voltava era sempre a mesma história. Gastava todo dinheiro que encontrava, dormia quase o tempo inteiro e quando estava acordado bebia até começar a implicar com quem estivesse ao seu alcance, mas só em casa. Na rua era um frouxo.
Era o segundo mês de Maicon como caixa de supermercado. O segundo salário que recebia. O primeiro terminara nas mãos do pai, que achou e confiscou a quantia revirando as coisas da mãe.
Neyla passou o dia inteiro sendo consumida pelo medo do que aconteceria quando o filho chegasse, visse Julião dormindo no quarto e os machucados em seu rosto.
Maicon e a mãe tinham uma relação de amor e confiança profundos. Desde que a irmãzinha nascera, Maicon nunca mais havia se envolvido com o submundo que os rodeava. Tinha voltado aos estudos e, desde então, ajudava a mãe a sustentar a casa. Pagava integralmente a creche em que Raylane passava os dias, enquanto a mãe trabalhava como diarista em casas particulares.
Quando a noite chegou, Neyla
deu graças a Deus quando Julião acordou, tomou banho e saiu sem falar nada.
Ela teria tempo para tentar acalmar o filho e evitar uma tragédia doméstica.
Quando Maicon chegou e viu o rosto da mãe fechou as mãos e socou a própria cabeça com força. Neyla o envolveu num abraço e ambos choraram juntos. Não falaram nada. Maicon tirou a mochila das costas, colocou-a no sofá rasgado, deu um beijo no rosto da mãe e saiu sem dar-lhe o dinheiro do salário. Dessa vez, aquele dinheiro teria outro destino.
Neyla tentou impedir que o filho saísse pela porta naquele estado que ela não conhecia, mas pressentia. Calado, com o olhar crispado e o corpo todo endurecido. Ela sabia o que ele iria fazer e implorou, sem resultado. Ela perdera totalmente qualquer contato com ele, que saiu andando como um corpo sem alma.
Maicon rodou por todo o complexo do alemão, procurando os conhecidos dos tempos em que fora aviãozinho e fogueteiro do tráfico. Precisava de uma arma, qualquer uma, a qualquer preço dentro do dinheiro do salário, que não era muito. E ficou rodando pelas vielas meio desorientado, mas decidido.
Em casa, tudo que Neyla podia fazer era rezar, pedir, implorar, prometer e buscar no fundo de sua fé alguma providência que os livrasse da tragédia anunciada.
Ela rezou com toda a fé que sempre tivera desde muito pequena, acendeu uma vela e ficou ajoelhada durante as 4 horas em que Maicon ficou fora. E, cada minuto dessas horas, ela rezou sentido o pavor de que fosse o último. Ela temia por todo a vida que Maicon perderia fugindo ou preso numa penitenciária, ...caso se tornasse o assassino do pai.
Nem a pancada na porta, anunciando a volta de Julião, bêbado, a tirou de sua concentração santa. O crápula se jogou na cama de casal, sem dizer palavra alguma, apenas emitindo um grunhido animalesco.
Pronto, pensou ela, o cenário
da tragédia está montado. A primeira coisa que ela fez foi trancar a porta da
casa com todas as voltas que a fechadura podia dar.
O único jeito era tentar manter Maicon do lado de fora e tentar demovê-lo da ideia de matar o pai. Ela guardou as chaves nos seios e voltou a concentrar-se em suas orações e promessas.
Santa Rita de Cássia não podia abandoná-la agora.
Ficou ajoelhada até ouvir o estrondo da porta sendo arrombada por um chute de Maicon que entrou e foi direto para o quarto empunhando a arma já engatilhada.
Neyla o interceptou na porta e quando os dois olharam
para a cama viram o improvável: Julião jazia morto, com a boca e os olhos
arregalados, quase fora das órbitas, com a expressão aterrorizada como se sua última
visão, houvesse lhe arrancado a vida..
Edmir Saint-Clair
Gostou?
Curta, comente, compartilhe e ajude a divulgar nosso trabalho.
Obrigado.
UM SONHO DE NATAL
A
bicicleta, no meio daquela grande vitrine natalina, chamou-lhe a atenção. Era
vermelha e modelo BMX, parecida com a primeira bicicleta que dera ao filho. Há
mais de 35 anos. A lembrança foi automática e dolorida.
Na noite da véspera de Natal, perto do horário de fechar, os shoppings se tornam o maior dos infernos para quem está ali apenas para comprar um sifão da pia, que estourou.
Até a loja de materiais de construção se apropriou do Papai Noel e colocou um
pobre velhinho fantasiado para vender vasos sanitários e Box blindex em 12 vezes,
porque é Natal.
Ele desistira de tentar gostar de Natal havia tempo, na verdade, não suporta a data. Gosta
de passá-la como se não houvesse.
De
tudo que já havia perdido, o contato com o filho era o que mais lhe doía. Esse
seria o décimo ano, o décimo natal desde que haviam rompido. Nem uma troca de
palavra sequer durante toda essa eternidade. Tentara uma reaproximação de diversas maneiras, durante todos esses últimos anos, mas nunca obtivera resposta alguma.
Quando
saiu, o shopping já estava praticamente fechado, assim como todo o comércio do
bairro. Existe apenas uma noite, no Rio de Janeiro, em que os bares, restaurantes, farmácias e todo o resto do comércio fecha; é na noite de natal.
Voltando
para casa, pelo caminho mais longo, foi vendo o tráfego ir se reduzindo, os
pontos de ônibus se esvaziando e pensou que não trocaria o sifão da pia naquela noite.
Queria apenas dormir. Definitivamente, o natal não lhe faz bem.
Ele
sabe, já passou várias dessas meias-noites na rua, por livre vontade. Saía de
casa alguns minutos antes e passava a meia-noite na rua. Apenas para ver sua
própria solidão tomar conta de tudo e imperar soberana. Não tinha mais medo de
encará-la. Ao contrário, tornaram-se bons companheiros.
Chegou ao seu condomínio, parou
na entrada da garagem e, enquanto aguardava que o porteiro lhe abrisse o
portão, ouviu A voz inconfundível:
-
Feliz Natal pai. Vamos passar juntos?
Era
seu filho.
Edmir Saint-Clair
------------------------------------------------------
Gostou? 👇 Compartilhe com seus amigos
NOITE DE NATAL
Seu pai o despertou dizendo-lhe que era o dia de retirar os pontos. Dia 24 de dezembro, mas ele não tinha a menor ideia, nem de que dia da semana era aquele e muito menos do mês.
Acordou e permaneceu deitado, tudo estava muito estranho. Ele se sentia estranho demais. Não tinha noção de que dia era aquele, nem de quanto tempo havia "dormido", o que, até aquele momento, pensava ter sido um sono normal. Nunca se sentira daquela forma. O corpo fraco, tremolo, a cabeça não encontrava um ponto de equilíbrio sobre seu pescoço e parecia pender para os lados. Uma intensa coriza começou a lhe escorrer pelo nariz.
Passou a mão no rosto e sentiu o curativo grande no supercílio direito. Lembrou-se do acidente. Um pensamento racional no meio daquele caos mental o fez dar-se conta que havia passado muito mais tempo do que imaginava.
Levantou-se com muita dificuldade. Quando deu por si já estava deitado no banco de trás do carro do pai. As superquadras de Brasília possuem quebra molas enormes e sua cabeça explode a cada solavanco. Devia estar resfriado, pensou, ainda bem que trouxe um rolo de papel higiênico para dar conta daquela coriza incomum. Assua o nariz sente uma pontada aguda na cabeça e ouve um barulho vindo de dentro de seu crânio.
Quando o pai para na entrada do Hospital das Forças Armadas, ele mal consegue saltar do carro, no que foi ajudado por não sabe quem.
Apoiando-se no bom samaritano, foi conduzido até a entrada do prédio, enquanto seu pai fora estacionar o carro. Ouvia sua cabeça fazer mais barulhos esquisitos, nunca havia sentido aquilo. Seu nariz escorria numa coriza que nunca tivera antes. De repente, ouve uma voz elevar-se com autoridade:
- Tragam uma maca imediatamente para esse rapaz!
Era um médico e o rapaz era ele.
Deitaram-no na maca, que chegou junto com seu pai que vinha do estacionamento.
Ele não tinha a menor ideia do estava acontecendo, estava confuso e assustado. Sentiu-se frágil e indefeso. Não parecia um pesadelo, ele sabia que era real.
O médico lhe fez algumas perguntas que seu pai o ajudou a responder. Só então se deu conta de que "dormira" mais de uma semana e que não se lembrava de nada do que acontecera nesse ínterim. A não ser de ter acordado uma noite, depois do impacto no rodapé que lhe rasgou o lado direito frontal da cabeça.
Daquele único dia em que acordou, em casa, depois do acidente, sua leve lembrança era da dor lancinante na cabeça que o fizera implorar para que seus pais o levassem para o hospital. Eles não o levaram. Porque não o fizeram? E ele "dormiu" mais alguns dias.
Não se lembrava de ter acordado nenhuma vez, além daquela. Não se lembrava de como se alimentara, bebera água, como fora ao banheiro ou como fizera qualquer outra coisa. Um ser humano não sobreviveria por uma semana sem cumprir essas necessidades fisiológicas. Era como se aqueles dias não tivessem existido. Mas, se ele estava ali naquele hospital, vivo, com certeza aqueles dias existiram, pensou. Quando tudo passasse alguém haveria de lhe dar aquelas respostas.
Lembrou-se que, nos momentos seguintes ao acidente que provocara a fratura no crânio, já sentia que havia acontecido alguma coisa mais grave com o seu cérebro e pediu que tirassem um raio-X do local da batida (ano 1975 - século 20).
Em vez disso, sua mãe ignorou seus pedidos e convenceu os médicos de que ele estava apenas muito “nervoso” e "exagerando" o ocorrido e, em vez do exame, lhe aplicaram um calmante endovenoso que o fez dormir e acordar somente mais de uma semana depois (pelo menos era assim na memória dele). Foram exatos 10 dias que não existiram para ele.
Porque não acreditaram quando ele se queixou da estranha sensação que sentira no cérebro no dia do acidente?
Porque razão sua mãe não acreditara nos graves sintomas dos quais se queixara durante aquele trajeto até o hospital, logo após o violento choque de seu crânio com o chão?
Quando viu seu pai e o médico que o socorrera na entrada se aproximando pelo imenso corredor, foi percebendo que a expressão de ambos era de tensão.
O pai se antecipou ao médico e falou:
- Você vai ter que ser internado.
- O que eu tenho? Perguntou assustado.
O médico tomou a palavra:
- Está com suspeita de fratura de crânio e ruptura da dura-máter, uma das três meninges que envolvem o cérebro. O líquido que estava saindo do seu nariz é o líquido que fica dentro dessa membrana e que envolve, protege e estabiliza o cérebro. A dor que você está sentindo é a pressão do ar que entrou quando o líquido saiu. Da mesma forma que o ar entra numa garrafa quando derramamos o seu conteúdo líquido.
Antes que ele perguntasse ou esboçasse qualquer reação, um enfermeiro começou empurrar sua maca em direção à sala de raios-X.
Ele estava muito assustado, com medo de morrer. Aos 19 anos, a ideia da morte é ainda muito mais aterrorizante. Nunca havia passado por nada tão sério com relação à saúde ou a acidentes graves. Tudo aquilo que o médico acabara de lhe falar soava muito amedrontador.
Os exames foram feitos e confirmou-se o diagnóstico inicial.
Foi levado para o 9° andar, neurologia, do Hospital das Forças Armadas, e instalado em um quarto branco, estéril e modernoso.
O médico regulou sua cama hospitalar para que a inclinação da cabeça ficasse no ângulo exato e devido. Ele não poderia se levantar para nada, absolutamente nada. Tampouco poderia se virar para os lados, na cama. Deitado de barriga para cima, sem poder ver televisão, ler ou qualquer outra atividade que pudesse exigir, mesmo que minimamente, esforço para o seu cérebro dolorido e inchado. Não poderia sair daquela posição nem quando estivesse dormindo.
A noite chegou, 24 de dezembro, véspera de natal. Ele não acreditava no que estava vivendo. A chuva intensa, que começou a cair e a escorrer pelo vidro da janela, parecia tornar aquela noite ainda mais surreal.
A tempestade fez com que as linhas telefônicas parassem de funcionar, o que não era raro naquele tempo, isolando-o ainda mais da vida, e interrompendo a ligação telefônica com a única pessoa que se importava com ele naquela noite de terror, sua namorada que, por ter apenas 16 anos, não pôde passar a noite com ele no hospital, por ser menor de idade.
A interrupção do telefonema aumentou ainda mais aquela profunda tristeza que não conhecia. O manto negro da solidão absoluta começou a tomar conta de tudo, até chegar ao recôndito mais profundo de sua alma.
Naquela noite de Natal suas únicas companhias foram o medo da morte, a solidão, o abandono e a ausência doída de todos que amava. E as lágrimas lhe caíram até que o sono o vencesse.
Nunca entendeu porque sua mãe, seu pai e seus irmãos o abandonaram, daquela forma, durante um momento tão grave e crítico, quando acabara de saber que corria real e iminente perigo de morte, conforme o neurologista revelou.
Naquele Natal, quando ele mais precisava, todos estavam ausentes, ocupados com os festejos natalinos em família.
Nunca mais gostou do Natal.
Nunca compreendeu porque haviam feito aquilo com ele.
Mesmo décadas depois, ninguém em sua família sequer aceitava tocar naquele assunto, escutá-lo ou respondê-lo. Sempre que ele tentava, obtinha a mesma resposta vazia, impessoal e desprovida de qualquer empatia, carinho ou solidariedade:
- Esquece isso...
Dita sempre de uma forma fria, desinteressada e lacônica.
E ele nunca soube o que aconteceu naqueles 10 dias que não existiram.
- Edmir Saint-Clair
Gostou? 👇 Compartilhe com seus amigos
DESTINO MENINO.
Todo minuto é momento
Um invento, um sentido,
Por fora, por dentro,
É cada segundo, sem tempo,
É quase nada no vento
A vida são horas correndo
e se existe ou não um destino,
Ele é só um menino
que não sabe onde ir
A verdade é que nada se sabe,
Se é do errado que se chega ao certo,
Se é para frente, para trás ou para os lados,
Porque não tem lado certo, nem errado
Não tem nem em cima,
nem embaixo
E os minutos continuam correndo,
E a gente sempre mais lentos,
Sem saber para que andar
Já que é o tempo que nos carrega
Até onde quiser nos levar
A mim, que me leve
em qualquer pé de vento
Para um tempo que seja de amar.
– Edmir Saint-Clair
Gostou? 👇 Compartilhe com seus amigos
O MONGE DE COPACABANA
Jorge havia passado sete anos no Tibet. Não porque fosse um espiritualista nato, mas para fugir de uma grave acusação envolvendo brigas de gangues que haviam culminado em homicídio. Ele não tivera participação direta no evento, mas fazia parte da turma que participou do crime e não tinha como provar que não estava no local no momento do ocorrido. Sem lhe restar esperança, sua família o sugeriu uma fuga para algum lugar onde não pudesse ser encontrado.
Jorge tinha um primo que se tornara, há pouco, monge no
Tibet, que lhe ofereceu abrigo até que as coisas serenassem no Brasil. Para um
praticante de lutas e frequentador assíduo de brigas de rua ou qualquer coisa
parecida, seria uma mudança absoluta e, muitos apostaram, impossível.
Sem opção, Jorge partiu rumo ao Tibet. A caminho do
mosteiro onde ficaria hospedado, teve acesso as últimas notícias sobre o julgamento
de seu caso. Ele havia sido sentenciado há 8 anos de prisão, em regime fechado.
Jorge deu graças a Deus por estar tão longe, não suportaria nem um mês numa
penitenciária brasileira. Esse pensamento serenou sua alma.
Sete anos depois, Jorge aterrissa no galeão de volta a sua
cidade natal e já resolvido com a justiça brasileira. É seu recomeço.
Sente-se um homem completamente diferente daquele valentão
ridículo que fora um dia. Os ensinamentos que recebera o transportaram para outra
dimensão dentro de si mesmo. No caminho até a casa dos pais, em Copacabana a
primeira coisa que reconheceu foi a decadência do aeroporto, que já estava
decadente há sete anos. A segunda, foi o cheiro da baía de guanabara saindo da
ilha do governador. Nada mudara, mas, para ele, tudo mudara. Lembrou-se de um
dos princípios básicos da sabedoria tibetana: quando você muda por dentro, tudo
por fora muda junto.
Era verdade, nada do que via o incomodava mais.
Assim que terminou de tomar o café da manhã de boas-vindas
que os pais lhe haviam preparado, resolveu ir até a praia de Copacabana, sua
areia natal. Seus novos ares monásticos eram puro êxtase com tudo a sua volta. Os
pais, o velho porteiro do prédio, a secretária doméstica que o viu crescer e
todos que o viam exclamavam sobre a mudança impressionante que Jorge havia
sofrido.
Jorge, a cada observação de alguém, pensava:
“A mudança interior, realmente, provoca muitas mudanças no mundo ao redor."
Chegou na praia, sentou-se, colocou seu celular e sua carteira
ao lado e assumiu a postura tradicional de meditação. Havia poucas pessoas
naquele dia nublado. Fechou os olhos e, ao som do barulho das ondas, meditou
profundamente, Estava em paz.
Quando abriu os olhos, seu celular, sua carteira e toda
calma e serenidade, que havia trazido do Tibet, haviam sumido.
Copacabana não é para amadores, nem para monges.
Depois disso, Jorge desistiu de fundar um templo para meditação e abriu mais uma academia de Jiu-Jitsu em Copacabana.
Edmir St-Clair
OS LACERDINHAS (O INCÊNDIO DA PRAIA DO PINTO)
Pensando bem, faz muitos anos que nem sequer ouço falar. O Lacerdinha tinha
poucos milímetros e não voava. E o Lacerdinha não transmitia doenças.
Era pretinho e infestava o Leblon, principalmente as transversais, numa
certa época do ano. Minhas lembranças com relação a eles estão ligadas à época
em que eu morava na Rua José Linhares.
No final da tarde, eram cigarras cantando e Lacerdinhas caindo das
árvores. Às vezes nos olhos. Ardia e coçava muito!
Deixava os olhos inchados e nossas mães preocupadas.
Eles eram atraídos por roupa clara, principalmente as amarelas. Por vezes,
atingiam os olhos e provocavam irritação e ardência intensas.
Esses minúsculos insetos eram chamados de Lacerdinhas em referência a um
antigo político carioca, Carlos Lacerda, que fora governador no tempo do estado
da Guanabara.
Descobrimos que os lacerdinhas depositavam suas larvas nas folhas das
árvores, que ainda estavam enroladas e cheias de água da chuva. A gente as
desenrolava e surgiam um monte de Lacerdinhas pequenos em seu interior.
Para mim, os Lacerdinhas despertam uma lembrança muito marcante.
Uma história que me provoca um sentimento muito incômodo até hoje. Eu
tinha uns seis anos de idade e era acostumado a brincar na nossa rua, mas só no
quarteirão, sem atravessar a rua. Havia muitas crianças, tanto no meu prédio
quanto nos prédios vizinhos que faziam parte daquela turminha de meninos da
mesma idade.
Naquele tempo no Leblon, a maioria
das casas tinha uma empregada que morava na favela Praia do Pinto ou na Cruzada
São Sebastião.
Quando, por algum motivo, a empregada da minha mãe levava o filho para o
trabalho, no caso a minha casa, ele se tornava um amigo a mais, que passaria o
dia brincando comigo, meu irmão e nossos outros amigos. No período das férias
escolares isso era bem frequente e, às vezes, a Dona Celestina voltava para a
casa deles na favela da Praia do Pinto e ele ficava e dormia lá em casa com a
gente. Eu e meu irmão adorávamos a presença dele. Era um menino doce, risonho e
engraçado.
Seu apelido era Bilico, o nome era Bernardo, o dia era sábado, dez de
maio de mil novecentos e sessenta e nove, véspera do Dia das Mães.
Dona Celestina e minha mãe estariam ocupadas o dia inteiro preparando o
almoço comemorativo do dia seguinte.
Bilico era mais novo que eu, um ano e mais velho que meu irmão apenas
alguns meses. Era negro com os dentes grandes e muito brancos. Era tímido, mas
engraçado, falava de uma maneira diferente que eu achava legal. Quando Bilico
passava o dia lá em casa fazia tudo junto comigo e meu irmão; assumia a nossa
rotina, almoçava, tomava banho, brincava, lanchava, descia para brincar conosco
e era sempre muito divertido.
Nesse dia, Bilico chegou cedo, tomou café conosco e descemos pra rua pra
brincar. Era época de Lacerdinha.
Dentre os garotos que brincavam na rua, tinha um que era especialmente
assustador para mim e meu irmão. O Arlindo era mais velho, mas não andava com
os garotos da idade dele. Andava conosco, que tínhamos uns dois anos a menos.
Nessa idade, isso faz uma grande diferença.
Gostava de nos intimidar e bater. Ninguém ficava com pena quando o pai
dele aparecia chamando-o, sempre gritando e batendo nele.
Nós também tínhamos medo do pai dele.
Nessa tarde, estávamos catando Lacerdinhas nas árvores. Abríamos as
folhas e ficávamos observando os Lacerdinhas se mexendo lá dentro.
De repente, o Arlindo pega uns Lacerdinhas com o dedo e enfia com
violência no olho do Bilíco, que observava bem de pertinho.
− Tá com fome? Come neguinho
esfomeado!
Arlindo falou aquilo com mais raiva do que lhe era peculiar, todos nós
tomamos um susto. E ele nem conhecia o Bilíco...
Bilíco começa a coçar o olho e a chorar com a ardência intensa.
Todos os meninos começaram a rir. Menos eu, meu irmão e o Bilíco, que
saiu andando e chorando na direção da portaria do nosso prédio.
Lembro que me veio um sentimento estranho e desconfortável que eu nunca
havia experimentado antes - anos mais tarde eu saberia que aquilo se chama
constrangimento - e que nunca me saiu da memória. Eu senti vergonha. Vergonha
de não ter defendido o Bilíco, ele era meu amigo.
Bilíco não subiu para nossa casa, ficou num canto da portaria chorando
baixinho. Falou que se chegasse lá em cima chorando e com o olho inchado sua
mãe iria brigar com ele. Ela recomendava-lhe sempre que não queria que ele arrumasse
confusão com os "filhos das madames".
Depois de algum tempo, ele parou de chorar e subimos. Pela escada. Naquela
época, os empregados e pessoas negras de cor" só podiam subir pelo
elevador de serviço.
Mas o Bilíco só subia pela escada, tinha medo de elevadores.
Quando chegamos em casa, a
primeira coisa que Dona Celestina viu foi o olho do filho inchado e muito
vermelho. Não falou nada, mas fechou a cara. Chamou o Bilíco para a cozinha e
de lá só o vimos de novo quando eles foram embora, bem mais tarde. Lembro-me
bem da expressão de choro dele quando se despediu da gente.
Aquele sábado me marcou para sempre.
Naquela mesma noite, um misterioso e devastador incêndio irrompeu e tomou
conta da favela onde eles moravam. Queimou por toda a madrugada e por muitas
horas seguintes, consumindo tudo e deixando centenas e centenas de famílias sem
teto e sem nada. Era dia onze de maio de mil novecentos e sessenta e nove, Dia
das Mães.
A casa da Dona Celestina e do Bilíco pegou fogo e virou cinzas, junto com
toda a favela da Praia do Pinto, que queimou inteira.
Não sobrou nenhum barraco
de pé.
Dona Celestina nunca mais voltou, e o Bilíco nunca mais veio passar o dia
conosco.
Nunca mais soubemos deles.
- Edmir Saint-Clair
EQUIPE TESTEMUNHA OCULAR
-
VISITE NOSSO CANAL NO YOUTUBE POD SIM ---------------------------------------------------------------------
-
Utilize qualquer programa VPN para melhor experiência. Clique aqui ou na imagem para ver DIVERTIDA MENTE 2 CANAIS DE TV SE VC NÃO ESTÁ...
-
-----------------------------------------------------------------------------------------