ORIENTADOR LITERÁRIO

O ORIENTADOR LITERÁRIO é um profissional que acompanha, ensina e participa de todo processo de criação de um livro. - - - - -- UM PROFISSIONAL EXPERIENTE, especializado em redação criativa, capaz de despertar toda a sua criatividade potencial escondida. = - - - - - - UM PROFESSOR que vai transformar a sua forma de criar e escrever; - - - - - - Experimente, é terapêutico e libertador. - - - - - - AS HISTÓRIAS QUE SÓ VOCÊ TEM PARA CONTAR VÃO FICAR PARA SEMPRE.
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OS LACERDINHAS (O INCÊNDIO DA PRAIA DO PINTO)

 Nunca mais vi um Lacerdinha.

Pensando bem, faz muitos anos que nem sequer ouço falar. O Lacerdinha tinha poucos milímetros e não voava. E o Lacerdinha não transmitia doenças.

Era pretinho e infestava o Leblon, principalmente as transversais, numa certa época do ano. Minhas lembranças com relação a eles estão ligadas à época em que eu morava na Rua José Linhares.

No final da tarde, eram cigarras cantando e Lacerdinhas caindo das árvores. Às vezes nos olhos. Ardia e coçava muito!

Deixava os olhos inchados e nossas mães preocupadas.

Eles eram atraídos por roupa clara, principalmente as amarelas. Por vezes, atingiam os olhos e provocavam irritação e ardência intensas.

Esses minúsculos insetos eram chamados de Lacerdinhas em referência a um antigo político carioca, Carlos Lacerda, que fora governador no tempo do estado da Guanabara.

Descobrimos que os lacerdinhas depositavam suas larvas nas folhas das árvores, que ainda estavam enroladas e cheias de água da chuva. A gente as desenrolava e surgiam um monte de Lacerdinhas pequenos em seu interior.

Para mim, os Lacerdinhas despertam uma lembrança muito marcante.

Uma história que me provoca um sentimento muito incômodo até hoje. Eu tinha uns seis anos de idade e era acostumado a brincar na nossa rua, mas só no quarteirão, sem atravessar a rua. Havia muitas crianças, tanto no meu prédio quanto nos prédios vizinhos que faziam parte daquela turminha de meninos da mesma idade.

 Naquele tempo no Leblon, a maioria das casas tinha uma empregada que morava na favela Praia do Pinto ou na Cruzada São Sebastião.

Quando, por algum motivo, a empregada da minha mãe levava o filho para o trabalho, no caso a minha casa, ele se tornava um amigo a mais, que passaria o dia brincando comigo, meu irmão e nossos outros amigos. No período das férias escolares isso era bem frequente e, às vezes, a Dona Celestina voltava para a casa deles na favela da Praia do Pinto e ele ficava e dormia lá em casa com a gente. Eu e meu irmão adorávamos a presença dele. Era um menino doce, risonho e engraçado.

Seu apelido era Bilico, o nome era Bernardo, o dia era sábado, dez de maio de mil novecentos e sessenta e nove, véspera do Dia das Mães.

Dona Celestina e minha mãe estariam ocupadas o dia inteiro preparando o almoço comemorativo do dia seguinte.

Bilico era mais novo que eu, um ano e mais velho que meu irmão apenas alguns meses. Era negro com os dentes grandes e muito brancos. Era tímido, mas engraçado, falava de uma maneira diferente que eu achava legal. Quando Bilico passava o dia lá em casa fazia tudo junto comigo e meu irmão; assumia a nossa rotina, almoçava, tomava banho, brincava, lanchava, descia para brincar conosco e era sempre muito divertido.

Nesse dia, Bilico chegou cedo, tomou café conosco e descemos pra rua pra brincar. Era época de Lacerdinha.

Dentre os garotos que brincavam na rua, tinha um que era especialmente assustador para mim e meu irmão. O Arlindo era mais velho, mas não andava com os garotos da idade dele. Andava conosco, que tínhamos uns dois anos a menos. Nessa idade, isso faz uma grande diferença.  Gostava de nos intimidar e bater. Ninguém ficava com pena quando o pai dele aparecia chamando-o, sempre gritando e batendo nele.

Nós também tínhamos medo do pai dele.

Nessa tarde, estávamos catando Lacerdinhas nas árvores. Abríamos as folhas e ficávamos observando os Lacerdinhas se mexendo lá dentro.

De repente, o Arlindo pega uns Lacerdinhas com o dedo e enfia com violência no olho do Bilíco, que observava bem de pertinho.

−  Tá com fome? Come neguinho esfomeado!

Arlindo falou aquilo com mais raiva do que lhe era peculiar, todos nós tomamos um susto. E ele nem conhecia o Bilíco...

Bilíco começa a coçar o olho e a chorar com a ardência intensa.

Todos os meninos começaram a rir. Menos eu, meu irmão e o Bilíco, que saiu andando e chorando na direção da portaria do nosso prédio.

Lembro que me veio um sentimento estranho e desconfortável que eu nunca havia experimentado antes - anos mais tarde eu saberia que aquilo se chama constrangimento - e que nunca me saiu da memória. Eu senti vergonha. Vergonha de não ter defendido o Bilíco, ele era meu amigo.

Bilíco não subiu para nossa casa, ficou num canto da portaria chorando baixinho. Falou que se chegasse lá em cima chorando e com o olho inchado sua mãe iria brigar com ele. Ela recomendava-lhe sempre que não queria que ele arrumasse confusão com os "filhos das madames".

Depois de algum tempo, ele parou de chorar e subimos. Pela escada. Naquela época, os empregados e pessoas negras de cor" só podiam subir pelo elevador de serviço.

Mas o Bilíco só subia pela escada, tinha medo de elevadores.

  Quando chegamos em casa, a primeira coisa que Dona Celestina viu foi o olho do filho inchado e muito vermelho. Não falou nada, mas fechou a cara. Chamou o Bilíco para a cozinha e de lá só o vimos de novo quando eles foram embora, bem mais tarde. Lembro-me bem da expressão de choro dele quando se despediu da gente.

Aquele sábado me marcou para sempre.

Naquela mesma noite, um misterioso e devastador incêndio irrompeu e tomou conta da favela onde eles moravam. Queimou por toda a madrugada e por muitas horas seguintes, consumindo tudo e deixando centenas e centenas de famílias sem teto e sem nada. Era dia onze de maio de mil novecentos e sessenta e nove, Dia das Mães.

A casa da Dona Celestina e do Bilíco pegou fogo e virou cinzas, junto com toda a favela da Praia do Pinto, que queimou inteira.

         Não sobrou nenhum barraco de pé.

Dona Celestina nunca mais voltou, e o Bilíco nunca mais veio passar o dia conosco.

Nunca mais soubemos deles.

-  Edmir Saint-Clair


A favela banida


A história sobre o incêndio da favela Praia do Pinto.

EQUIPE TESTEMUNHA OCULAR


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A MEDALHA DE SÃO JORGE

 


A ansiedade era grande. Não via o filho há tempo demais. Saudade apertada, mais ainda quando faltam poucas horas para revê-lo. Diego não quis que Felipe fosse pegá-lo no aeroporto por conta da falta de previsão de tempo nas esperas entre conexões. Estava vindo de Pequim, depois de cinco anos na China.

Felipe resolveu descansar um pouco, a ansiedade desses últimos dias havia sido desgastante. Deitou-se no sofá da sala e adormeceu. Passara a noite acordado, ansioso, pensando na volta do filho. Agora, cedia ao cansaço.

A campainha toca insistentemente. Ele levanta assustado e, ato reflexo, corre para a porta.

O antigo relógio de pêndulo da sala, herança do avô, marca 8h e 06m da manhã. Felipe abre a porta.

− Diego... Dá cá um abraço filhão...

Diego abraça o pai com força e saudade iguais e intensas. Um abraço longo, aconchegante e familiar. Pai e filho que se querem tão bem quanto é possível. Surfistas, rubro-negros e cariocas. Um extenso rol de afinidades. Amor na mais pura acepção dessa palavra tão profunda.

Felipe pega uma das malas enquanto o filho às outras. Pelo volume da bagagem, veio de vez. Tomara, pensou.

Vôos internacionais sempre chegam cedo pela manhã. A tempo de aproveitarem e brincar um pouco nas ondas do final do Leblon. Felipe mostra a Diego a prancha que mandou fazer de presente para o filho.

Diego fica emocionado com a recepção e o carinho do pai, e lhe dá mais um daquele demorado e saudoso abraço. Tem orgulho do pai. A felicidade dos dois é transbordante. Aqueles momentos em que o sorriso não sai do rosto e parece que nunca vai sair. Olhar para o outro alimenta ambos os sorrisos. E o silêncio completa.

− Ele é meu filho. Pensou.

− Ele é meu pai. 

Pensou o filho no mesmo exato milésimo daquele silêncio sagrado. Certas emoções são grandes demais, não cabem em palavras.

A felicidade acontecia explicitamente naquele momento, pai e filho desfrutando a plenitude da presença do outro.

Combinaram que Diego ia dormir um pouco, viajara por  mais de 30 horas. Estava exausto.

Felipe deu um beijo na testa do filho e saiu do quarto.

Diego não acordaria antes das 14h, ele tinha 6 horas pela frente. Seria bom almoçarem em casa para que Diego pudesse acordar com calma e sem pressa. Lembrou-se da feijoada de sábado do Degrau que sempre comeram desde que o filho era pequeno.  Depois da separação, a feijoada tinha se tornado programa obrigatório dos dois. É a pedida perfeita para hoje.

Ele volta até a porta do quarto do filho. Mas não a abre. É só a alegria que não está cabendo.

Uma feijoada e depois uma boa remada no mar de final de tarde de outono. A luz mais bonita do Rio de Janeiro.

Seria perfeito se tivéssemos um baseado para fumar antes do surf. Há anos não fumava. Fumar um baseado com o filho tem um significado especial. Não é um consumo de drogas doentio. É um ritual. O preconceito é uma lente mal construída que torna tudo mais feio. Uma lente de enfeiar o mundo.

Havia algum tempo que Felipe não comprava maconha, e tinha perdido o contato com os eventuais fornecedores do bairro. Nessa altura do fim de semana, se quisesse fumar um baseado antes da praia com o filho, teria que recorrer à Cruzada. Tudo bem, ali é tranqüilo, pensou. Riu sozinho, a última vez que foi na Cruzada comprar um baseado deve ter sido há, pelo menos, uns 25 anos atrás.

Diego voltou três dias antes de completar 30 anos. Um adulto, profissional com formação altamente especializada. Apesar de sempre ter tido um quarto na casa do pai, só haviam morado juntos nos primeiros dois anos da vida dele. Época da qual, obviamente, não se lembrava. Depois, eram fins de semana, férias e feriados, como todo pai separado. Pouco antes de viajar para a China, passaram onze meses morando juntos. O maior tempo que passaram até então. Os melhores também.

Felipe mora na Selva de Pedra. A Cruzada fica a um quarteirão. Antes, resolve passar no Degrau e deixar a feijoada reservada para viagem, e garantir que nada saísse errado. A feijoada de sábado do Degrau é concorrida no bairro e costuma acabar cedo. A idéia é, em vez de saírem para comê-la no restaurante, ele a servirá em casa, para que Diego acorde com toda calma e a coma na maior preguiça que conseguir.

•         * * *

Diego não conseguia parar de se mexer na cama, inquieto. Acordou incomodado, achou que fosse o frio do ar condicionado e se cobriu mais. Olhou a hora no celular, 11 horas da manhã. Dormira apenas por 3 horas... Isso não costumava acontecer. Geralmente, dormia 6 horas ininterruptas de um sono calmo. Sempre agradecia mentalmente o pai tê-lo introduzido na prática da meditação desde cedo. Atribuía a isso sua calma e equilíbrio. Mas, não naquele momento. Ainda cansado e sem conseguir adormecer novamente, sentia uma sensação estranha, uma ansiedade incomum. Rolou na cama até o cansaço vencer. Adormeceu.  Mas, o sono não foi repousante.

Acorda sobressaltado de um sono rápido e agitado. Olha o celular, meio-dia. É certo que não conseguiria mais dormir, e ficar na cama seria pior. Atribuiu a angústia à excitação da chegada, ao fuso horário e a tudo junto, pensou. Não estava acostumado a sentir aquela inquietação interna remexendo seu estômago. Não estava acostumado a sentir a sensação de ansiedade, sem motivo, sem sentido. Detestava se sentir confuso. Havia algo diferente e errado.

•         * * *

Felipe atravessou a rua e seguiu na direção da Cruzada.  Quando parou no cruzamento com a Av. Afrânio de Melo Franco, notou que a porta da Delegacia estava movimentada.

O sinal abriu e ele atravessou. Chegando esquina oposta, viu Adilson acenando e saindo da Igreja Santos Anjos, ele acenou de volta. São amigos desde pequenos, jogaram juntos no time de futebol de praia e muitas peladas no Condomínio dos Jornalistas. Distanciaram-se quando chegaram à vida adulta. Hoje, Felipe é arquiteto e Adilson motorista numa empresa estatal. Tem estabilidade no emprego e continua a morar na Cruzada, no apartamento que herdara dos pais. Apesar de ter tido amigos ali, Felipe entrara poucas vezes naquela comunidade. No Leblon, geralmente, algum desses amigos que moravam lá, pegavam os baseados para os outros que não moravam. Faziam “um avião pros amigos”. Sempre foi assim.

A certa altura de uma conversa formal, Felipe pergunta se Adilson poderia comprar um baseado para ele. A reação foi inesperada.

Adilson mostrou-se visivelmente contrariado e ofendido.

− Felipe, sempre achei você um cara legal. Gosto de você... Temos mais de 50 anos, nunca mais me peça isso. Nossas vidas são muito diferentes. Vamos guardar as boas lembranças. O tempo passou. Não tenho nada a ver com drogas, nem quero ter.

O constrangimento mútuo foi bastante incomodo. Os dois se conheciam desde pequenos. Naquele instante, uma distância nunca antes percebida deu-lhes um tapa na cara. A distância que sempre fingimos que não existia, como todos no Leblon, se escancarou ali na esquina da Igreja Santos Anjos.

Deram-se um aperto de mão e Adilson pôs-se a caminhar na direção de sua casa, a Cruzada.

Felipe demorou alguns minutos tentando compreender o que ocorrera. Ficou parado, na esquina, olhando Adilson que já ia vários metros à frente. Sentiu-se envergonhado. Mas, não sabia ao certo por que.

Recuperou-se quando lembrou que Diego o estava esperando. Teria que entrar na Cruzada para comprar. Voltou a caminhar, cuidando para não ir nem rápido, nem devagar demais. Normal. Não estava mais acostumado àquela situação. Estava se sentindo agoniado, lamentava ter ofendido o amigo, mesmo que involuntariamente.

Em seguida, ouviu dois ou três tiros que ele não soube precisar de que direção vinham. Não sabia que lado deveria proteger. Ouviu sirenes e barulho de carros vindos da direção da delegacia, os tiros aumentaram de intensidade. Percebeu que estava no meio do fogo cruzado. Imediatamente, sentiu algo rasgando e queimando sua barriga, uma dor profunda e o sangue quente jorrando e molhando-lhe os órgãos genitais e as pernas. Caiu com as mãos na barriga e a dor arrancou-lhe um gemido alto. Como se uma flecha de aço em brasa o tivesse penetrado fundo. Arrastou-se até o pilotis mais próximo. Era tudo que podia fazer naquele momento. Era surreal. Gritos vindos de todas as direções. Os tiros continuavam, era desesperador sentir o sangue escorrer e nenhuma possibilidade de socorro imediato. Pensou no filho e doeu-lhe a alma. Não podia morrer ali. Não hoje. Os tiros continuaram.

•         * * *

Diego adorava os requintes aos quais o pai se dedicava. Um bom café é um deles. Uma cafeteira de Expresso Italiano sempre com dezenas de opções e variedades de grãos de café que ele moía na hora. O café estava excelente, mas a ansiedade aumentara. Virou a xícara impaciente, sem degustar. Arrumou-se e resolveu descer.

Diego salta do elevador e da portaria já ouve o barulho de algumas sirenes passando. A sensação de quem tem algo errado é cada vez mais intensa.

•         * * *

Felipe tenta manter a respiração sob controle enquanto pressiona o ferimento que continua sangrando, empoçando na laje da rua. Felipe sente que está enfraquecendo, sente medo. Tenta manter a clareza. Pensar. Os tiros parecem que pararam. Adilson é o primeiro a aparecer na sua frente.

− Puta que pariu! Que merda meu véio! , gritou Adilson assustado, enquanto digitava o celular chamando o SAMU. Ali na Cruzada todos tem o número desse telefone. Após a ligação, Adilson agacha-se ao lado de Felipe que já está bastante pálido. O tiro era de grosso calibre e atingira o lado direito do abdômen. A hemorragia era intensa.

Felipe falou com a voz enfraquecida:

− Adilson, por favor, avisa meu filho.

− Você ainda mora no mesmo endereço?

Felipe confirmou com um movimento de cabeça.

Adilson arrancou um pingente do pescoço e partiu a medalha em dois:

− Fica com isso na mão e pede pela sua vida. Do jeito que você souber rezar. Pra São Jorge de Ogum. Vou dar a outra metade para o Diego.

Apenas percebeu quando os enfermeiros abriram espaço e o colocaram na maca. Tudo parecia nebuloso e distante. Os sons e vozes tinham eco. Os paramédicos fizeram alguns procedimentos ali mesmo. Ainda deu tempo de reforçar o pedido a Adilson.

Felipe apertou a metade da medalha nas mãos e começou rezar do jeito que ainda se lembrava.

Os solavancos da maca sendo encaixada na ambulância fazem com que a dor volte intensa, mas ele solta apenas um leve gemido. Ele percebe que os paramédicos estão sérios e concentrados. Apesar do tubo de oxigênio, sua respiração está acelerada e irregular. Ele tenta ficar acordado, mas as vozes e os ruídos se tornam cada vez mais distantes. Aperta a metade da medalha e faz força para coordenar os pensamentos tentando rezar. Não consegue mais manter a consciência. Sente literalmente a vida se esvaindo até desfalecer.

•         * * *

Em poucos minutos vários moradores já estavam na rua. A Selva de Pedra tem um jeito próprio de ser. Diego continuava cada vez mais ansioso e angustiado. Tentando entender algo daquela agitação, recebe uma explicação do porteiro do seu prédio; Troca de tiros na Cruzada com um baleado grave.

Diego sentiu um calafrio percorrer sua coluna como um bisturi gelado cortando suas costas. Percebeu um homem caminhando a passos rápidos vindo da praça na direção de sua portaria e o reconhece. É Adilson, amigo do pai que jogou futebol de praia com ele e morava na... Cruzada São Sebastião!

Sentiu as pernas se curvarem sem forças. Não podia ser. Mas, quanto mais Adilson chegava perto, mais seu olhar deixava claro quem era o baleado. Mas, não fazia sentido!

Adilson conhecera Diego desde que este nascera.

Chegou perto e o tirou da presença de outras pessoas.

− Diego, seu pai foi baleado. Está indo para o Hospital Miguel Couto e pediu pra você ir para lá.  Mas, antes ele pediu pra você pegar os documentos dele que estão na mesinha de cabeceira.

Adilson toca o ombro de Diego antes que ele saísse em direção à portaria para pegar os documentos. Tira a outra metade da medalha de São Jorge de Ogum e a entrega a Diego.

− Fica com isso na mão e pede pela vida do seu pai. Reza do jeito que você souber rezar. Para São Jorge de Ogum. A outra metade está com o Felipe. Agora vai, começa a rezar desde agora.

Diego está em estado de choque e procede como um robô, agindo mecanicamente. Ele não sabe rezar. Nunca aprendeu, nunca o ensinaram. Mas, ele pede a São Jorge de Ogum, com todas as forças e com a fé que nunca soubera ter. O elevador chega. Ele entra, toca o número de seu andar e volta para sua reza improvisada, mas cheia de fé. Fecha os olhos e imagina o pai sorrindo como há algumas horas atrás. Consegue sentir na alma o abraço que se deram. Seu espírito se acalmou, estranhamente, se acalmou. Quando abriu os olhos, ainda estava no segundo de dez andares. Parecia haver passado muito mais tempo. Abriu a mão e a metade da medalha havia marcado sua palma, tamanha a força com a qual a apertara.

O elevador chegou ao andar e ele abriu a porta. Quando saiu da cabine e olhou para a porta do apartamento de seu pai tomou um sustou que o deixou tonto. Suas malas estavam na porta. Ele se olhou e estava com a mesma roupa de quando chegou de viagem. Buscou a chave do apartamento no bolso e não a encontrou. Olhou de novo para suas malas ali na porta e aquilo era desconcertante. Não sabia o que pensar. Num impulso repentino, tocou a campainha e ouviu movimentos vindos do outro lado da porta. Tocou de novo. Ouviu o barulho da fechadura sendo aberta e, nesses infinitos milésimos de segundos, desejou o impossível. A porta se abriu e Felipe aparece com a epressão mais apavorada que ele já havia visto na face do pai. Os dois se abraçam e choram. Cada um com a sua metade da medalha de São Jorge de Ogum na mão.

No antigo relógio de pêndulo da sala, herança do avô, os ponteiros marcam 8h e 06m da manhã, pela segunda vez no mesmo dia.

Pai e filho abrem as mãos, ao mesmo tempo, e mostram cada um a sua metade da medalha para o outro.

- Edmir Saint-Clair

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NOITE DE NATAL

 

Seu pai o despertou dizendo-lhe que era o dia de retirar os pontos. Dia 24 de dezembro, mas ele não tinha a menor ideia, nem de que dia da semana era aquele e muito menos do mês.

 Acordou e permaneceu deitado, tudo estava muito estranho. Ele se sentia estranho demais. Não tinha noção de que dia era aquele, nem de quanto tempo havia "dormido", o que, até aquele momento, pensava ter sido um sono normal. Nunca se sentira daquela forma. O corpo fraco, tremolo, a cabeça não encontrava um ponto de equilíbrio sobre seu pescoço e parecia pender para os lados. Uma intensa coriza começou a lhe escorrer pelo nariz.

Passou a mão no rosto e sentiu o curativo grande no supercílio direito. Lembrou-se do acidente. Um pensamento racional no meio daquele caos mental o fez dar-se conta que havia passado muito mais tempo do que imaginava.

Levantou-se com muita dificuldade.  Quando deu por si já estava deitado no banco de trás do carro do pai. As superquadras de Brasília possuem  quebra molas enormes e sua cabeça explode a cada solavanco. Devia estar resfriado, pensou, ainda bem que trouxe um rolo de papel higiênico para dar conta daquela coriza incomum. Assua o nariz sente uma pontada aguda na cabeça e ouve um barulho vindo de dentro de seu crânio.

Quando o pai para na entrada do Hospital das Forças Armadas, ele mal consegue saltar do carro, no que foi ajudado por não sabe quem.

Apoiando-se no bom samaritano, foi conduzido até a entrada do prédio, enquanto seu pai fora estacionar o carro. Ouvia sua cabeça fazer mais barulhos esquisitos, nunca havia sentido aquilo. Seu nariz escorria numa coriza que nunca tivera antes. De repente, ouve uma voz elevar-se com autoridade:

- Tragam uma maca imediatamente para esse rapaz!

Era um médico e o rapaz era ele.

Deitaram-no na maca, que chegou junto com seu pai que vinha do estacionamento.

Ele não tinha a menor ideia do estava acontecendo, estava confuso e assustado. Sentiu-se frágil e indefeso. Não parecia um pesadelo, ele sabia que era real.

O médico lhe fez algumas perguntas que seu pai o ajudou a responder. Só então se deu conta de que "dormira" mais de uma semana e que não  se lembrava de nada do que acontecera nesse ínterim. A não ser de ter acordado uma  noite,  depois do impacto no rodapé que  lhe rasgou o lado direito frontal da cabeça.

Daquele único dia em que acordou, em casa, depois do acidente, sua leve lembrança era da dor lancinante na cabeça  que o fizera implorar para que seus pais o levassem para o hospital. Eles não o levaram. Porque  não o fizeram?  E ele "dormiu" mais alguns dias.

Não se lembrava de ter acordado nenhuma vez, além daquela. Não se lembrava de como se alimentara, bebera água, como fora ao banheiro ou como fizera qualquer outra coisa. Um ser humano não sobreviveria por uma semana sem cumprir essas necessidades fisiológicas. Era como se aqueles dias não tivessem existido. Mas, se ele estava ali naquele no hospital, vivo, com certeza aqueles dias existiram, pensou. Quando tudo passasse alguém haveria de lhe dar aquelas respostas.

Lembrou-se que, nos momentos seguintes ao acidente que provocara a fratura no crânio, já sentia que havia acontecido alguma coisa mais grave com o seu cérebro e pediu que tirassem um raio-X do local da batida (ano 1975 - século 20). 

Em vez disso, sua mãe ignorou seus pedidos e convenceu os médicos de que ele estava apenas muito “nervoso” e "exagerando" o ocorrido e, em vez do exame, lhe aplicaram um calmante endovenoso que o fez dormir e acordar somente mais de uma semana depois (pelo menos era assim na memória dele). Foram exatos 10 dias que não existiram.

Porque não acreditaram quando ele se queixou da estranha sensação que sentira no cérebro no dia do acidente?

Porque razão sua mãe não acreditara nos graves sintomas dos quais se queixara durante aquele trajeto até o hospital, logo após o violento choque de seu crânio com o chão? 

Quando viu seu pai e o médico que o socorrera na entrada se aproximando pelo imenso corredor, foi percebendo que a expressão de ambos era de tensão.

O pai se antecipou ao médico e falou:

- Você vai ter que ser internado.

- O que eu tenho? Perguntou assustado.

O médico tomou a palavra:

- Está com suspeita de fratura de crânio e ruptura da dura-máter, uma das duas membranas que envolve o cérebro, junto com a meninge. O líquido que estava saindo do seu nariz é o líquido que fica dentro dessa membrana e que envolve, protege e estabiliza o cérebro. A dor que você está sentindo é a pressão do ar que entrou quando o líquido saiu. Da mesma forma que o ar entra numa garrafa quando derramamos o seu conteúdo líquido.

Antes que ele perguntasse ou esboçasse qualquer reação, um enfermeiro começou empurrar sua maca em direção à sala de raios-X.

Ele estava muito assustado, com medo de morrer. Aos 19 anos, a ideia da morte é ainda muito mais aterrorizante. Nunca havia passado por nada tão sério com relação à saúde ou a acidentes graves. Tudo aquilo que o médico acabara de lhe falar soava muito amedrontador.

Os exames foram feitos e confirmou-se o diagnóstico inicial.

Foi levado para o 9° andar, neurologia, do Hospital das Forças Armadas, e instalado em um quarto branco, estéril e modernoso.

O médico regulou sua cama hospitalar para que a inclinação da cabeça ficasse no ângulo exato e devido. Ele não poderia se levantar para nada, absolutamente nada. Tampouco poderia se virar para os lados, na cama. Deitado de barriga para cima, sem poder ver televisão, ler ou qualquer outra atividade que pudesse exigir, mesmo que minimamente, esforço para o seu cérebro dolorido e inchado. Não poderia sair daquela posição nem quando estivesse dormindo.

A noite chegou, 24 de dezembro, véspera de natal. Ele não acreditava no que estava vivendo. A chuva intensa, que começou a cair e a escorrer pelo vidro da janela, parecia tornar aquela noite ainda mais surreal. 

A tempestade fez com que as linhas telefônicas parassem de funcionar, o que não era raro naquele tempo, isolando-o ainda mais da vida, e interrompendo a comunicação com a única pessoa que se importava com ele naquela noite de terror, sua namorada que, por ter apenas 16 anos, não pôde passar a noite com ele no hospital, por ser menor de idade. 

A interrupção aumentou ainda mais aquela profunda tristeza que não conhecia. O manto negro da solidão absoluta começou a tomar conta de tudo, até chegar ao recôndito mais profundo de sua alma.

Naquela noite de Natal suas únicas companhias foram o medo da morte, a solidão, o abandono e a ausência doída de todos que amava. E as lágrimas lhe caíram até que o sono o vencesse.

Nunca entendeu porque sua mãe, seu pai e seus irmãos o  abandonaram, daquela forma, durante um momento tão grave e crítico, quando acabara de saber que corria real e iminente perigo de morte, conforme o neurologista revelou.

Naquele Natal, quando ele mais precisava, todos estavam ausentes, ocupados com os festejos natalinos em família.

Nunca mais gostou do Natal.

Nunca compreendeu porque haviam feito aquilo com ele.

Mesmo décadas depois, ninguém em sua família sequer aceitava tocar naquele assunto, escutá-lo ou respondê-lo. Sempre que ele tentava, obtinha a mesma resposta vazia, impessoal e desprovida de qualquer empatia, carinho ou solidariedade:

- Esquece isso...

Dita sempre de uma forma fria, desinteressada e lacônica.

E ele nunca soube o que aconteceu naqueles 10 dias que não existiram.

 - Edmir Saint-Clair

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SAINDO DA DEPRESSÃO


De repente, ele se deu conta que as coisas começavam a entrar num sincronismo que há muito não existia. Pequenos detalhes se encaixando no momento certo.

O sabonete, que acabava no meio do banho, agora tem outro novinho à mão. A toalha, que ele não se esquecera de pegar, a mesma que só se lembrava de não tê-la pego quando estava fechando o chuveiro. O banho, que sempre lhe trouxe bem estar, ainda mais no verão carioca. A depressão havia lhe tirado todos os prazeres, até o da higiene.

De repente, o encadeamento dos eventos rotineiros parecia entrar em sintonia, um acontecimento não atrapalha mais o outro, agora, todos parecem se complementar.  Ele começou a perceber um aumento na capacidade de tomar pequenas decisões, como a que o fez comprar o sabonete antes que o outro acabasse, como era comum acontecer. A depressão lhe tirara a capacidade de decidir sobre tudo e qualquer coisa.

Seu cérebro estava se curando, buscando a estabilidade, a homeostase, se consertando.

Ele sabe que se não atrapalhar seu cérebro, tudo vai continuar a entrar, cada vez mais, em sintonia.

Sintonia com o quê ou quem?  Consigo mesmo. Com a sensação de se bastar, de não precisar de nada além da água caindo sobre seu corpo para ter aquela sensação de plenitude que sentia naquele agora.

Percebeu que estava fora do inferno. Um profundo alívio, do qual sobreveio uma leveza indescritível.  Perdeu o sentido de urgência, a ansiedade se dissipou.

Não foi mágica, foi ajuda, pedira socorro. Sozinho, teria morrido. Foi terapia, foi neuropsicologia. Foi a ciência que ajudou seu cérebro a se curar, deixando-o ser maravilhosamente fantástico como o de todos os seres humanos, permitindo que se reprocessasse e arrumasse toda a bagunça. A ciência fora capaz de lhe curar, intercedendo, efetivamente, na desensibilização e reprocessamento de traumas que lhe afetavam muito mais do que supunha sua vã filosofia.

Até aquele momento, ele não acreditava que sairia daquele mundo de horror chamado depressão. Ninguém que esteja passando por ela acredita que possa vencê-la, faz parte da doença.

Naquele momento, a água, o sabonete e a toalha lhe mostraram que ele estava de volta à vida.

Sobrevivera.

– Edmir Saint-Clair

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O ROUBO QUE NUNCA ACONTECEU

 

    Tudo dentro do planejado. Com alguma folga. Dá tempo de tomar um coco apreciando esse maravilhoso pôr do sol.

- A meditação tem me feito bem, pensou Jair.

Ele avista seu alvo a uma distância ideal. Levanta-se e mistura-se entre os corredores que passam. Regula seus passos no ritmo dos mais lentos. Quando percebe a aproximação esperada, reduz  mais um pouco seu ritmo, de modo que durante a ultrapassagem pelo alvo possa forçar alguma troca de olhares. Após a ultrapassagem bem sucedida, a distância aumenta apenas um pouco, o suficiente para não despertar suspeitas. E assim, foram e voltaram até o arpoador. Na volta, a distância ficara maior,  ficar muito próximo poderia despertar suspeitas. Jair sabe onde o alvo vai parar. Havia estudado minuciosamente a rotina do jovem deputado estadual.

Nos últimos metros, acelera a marcha e quando para no quiosque está ofegante, como deveria. Não foi difícil surgir assunto entre os dois enquanto tomam água de coco. Quando o alvo se despede, já existe uma certa camaradagem tipicamente carioca entre corredores de praia.

A partir daquele momento, tudo tinha que ter acertividade e rapidez. Assim que o alvo atravessa as duas pistas da praia, na direção da Rua Cupertino Durão, Jair apressa o passo e rapidamente alcança o outro lado da rua, onde o alvo tem de passar, obrigatoriamente. Encosta-se numa das árvores, entre dois carros estacionados, e aguarda. Ninguém vindo de nenhum dos lados.

O alvo passa e é abordado de forma agressiva, não deixando margem para reação alguma.

 - Sérgio, isso aqui é uma arma. Fique quieto e preste atenção. Vamos até a sua casa, andando devagar e conversando como dois velhos amigos. Se você fizer qualquer coisa errada morre. Ouviu? Responde! Ouviu?!

Jair foi bastante agressivo na aproximação, não deixando espaço para argumentações. Sérgio estava paralisado e apenas balbuciou um sim quase inaudível. Sempre foi uma pessoa muito medrosa.

Jair continua.

- Quanto mais nervoso você ficar mais perigoso fica para nós dois. Então fique calmo e tudo vai dar certo. Prometo pra você.

Com a arma dentro do agasalho, mas já devidamente apresentada a Sérgio, os dois continuam a andar na direção do elegante prédio do jovem deputado.

Sobem direto, sem parar na portaria. Morador não precisa se identificar. E, na maioria, nesses prédios, não se dá boa noite a porteiros.

Sérgio mora sozinho.

Na ampla sala, Sérgio não sabe o que estava realmente acontecendo, mas já percebe que um assalto comum não é.

Sérgio nunca fora dos mais corajosos, por isso estava acostumado a ser submisso sem questionar. Jair o manda sentar-se no sofá da sala.

À essa altura, por todo o contexto percebido, Sérgio começa a desconfiar porque Jair está ali. Ainda bastante nervoso tenta amenizar o clima.

- Fique tranqüilo, pode levar tudo o que você quiser. Não vou causar nenhum problema. Só quero não quero violências, por favor.

Sérgio tem a voz trêmula. Seu medo é visível e patético.

- Sérgio, sei que você tem 500 mil dólares em cédulas e cheques de viagem aqui no seu apartamento. Sei a que horas, onde, e a mando de quem você pegou esse dinheiro. Sei que ninguém pode saber que esse dinheiro existe e muito menos que está aqui na sua casa.

Sérgio ficou completamente branco. Pensou que seria roubado, mas aquilo era bem mais do que isso. Definitivamente, não era um simples assalto. Havia algo por trás.

- Você é policial federal? Perguntou Sérgio.

- Sorte sua que não!! Se fosse teria que matá-lo. Respondeu Jair soltando um riso.

Ainda sem entender, Sérgio percebe que Jair já não parece tão violento quanto no início, mesmo assim não consegue parar de tremer. Sempre fora medroso. Era óbvio que não estava lidando com um ladrãozinho pé de chinelo. Pelo linguajar e pela postura, Jair é profissional. Talvez, das forças de segurança. Na verdade, não fazia idéia de quem se tratava e de onde surgira aquele homem.

Jair pega seu celular e começa a filmar Sérgio.

- Você vai gravar? Por quê?! Pergunta Sérgio.

- Se levanta e vai pegar a mala com o dinheiro. Diz Jair apontando o celular.

Sérgio hesita:

- Não está mais aqui... o secretário do senador já pegou...

A voz de Sérgio falha e irrita Jair, que rapidamente troca o celular pela pistola, engatilha e aponta para ele.

O corajoso deputado se transfigura apavorado, e imediatamente revela que a mala está dentro do armário no quarto.

Jair não segura o riso. Os dois se recompõe, Jair volta a falar manso e nota que o deputado havia mijado nas calças.

Sérgio entra em seu quarto, abre o armário, pega a mala, coloca-a sobre a cama e a abre. Jair grava tudo ininterruptamente com o celular. Enquadrando o quarto inteiro, alternando com closes da mala e dos retratos de família no quarto do deputado, para caracterizar, com detalhes, onde estão naquele momento.

A seguir, voltam para a sala e Jair continua gravando a mala aberta sobre a mesa de jantar e a sala inteira ao fundo.

Pronto, aquele vídeo não deixa dúvidas de que aquele dinheiro esteve com o deputado dentro de sua casa.

Jair recolhe a mala cheia de dólares. Diante do atônito e medroso deputado mijado, recoloca seu agasalho esportivo, guarda o celular e a pistola no bolso.

- Sérgio, agora vai ser o seguinte. Daqui a duas horas vou enviar para você, pelo seu whatsApp, o vídeo que fizemos agora. Ou seja, eu tenho a prova de que você estava com 500 mil dólares em dinheiro vivo, e que, obviamente, não tem como explicar porque vieram parar aqui sem comprometer muita gente graúda. 

Mostre esse vídeo para o seu "pessoal”, porque ele também garante que você não pode ser preso para não delatar. Ou seja, não ter acontecido nada aqui, será melhor para todo mundo. 

Se eu souber que tem alguém atrás de mim, jogo esse vídeo na internet na hora, os jornalistas vão adorar e isso vai virar o próximo escândalo nacional da semana.

Sérgio ouviu calado, e calado permaneceu. 

Afinal, oficialmente, aquele dinheiro nunca existiu e ninguém poderia reclamá-lo sem se incriminar. Não tinha nada a dizer. Não podia fazer nada. A não ser aguardar o vídeo para garantir que continuaria vivo e interessante para o poder que representava.

Jair saiu do prédio tranquilamente, não sem antes perguntar ao simpático porteiro quanto estava o jogo do Flamengo contra o Botafogo no Maracanã:

- 4 a Zero pro Mengão, doutor! E ainda tá no primeiro tempo...

Era o que faltava para coroar aquela noite dourada para Jair. Afinal, como diz a sabedoria popular:

- Ladrão...que rouba ladrão...Tá perdoado!

  - Edmir Saint-Clair

Este conto faz parte do Livro "A Casa Encantada - Contos do Leblon"


 
 

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O REENCONTRO




 "E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos 
por aqueles que não podiam escutar a música."  Nietzsche

        Sexta-feira, saída do metrô, estação Jardim Oceânico, 7h da noite, chove. Ele se maldiz pela escolha de ter deixado o carro estacionado e ter pegado o metrô para ir ao centro. Sua reunião não durou nem uma hora e o custo do estacionamento não compensou a trabalheira das baldeações. Para completar, esqueceu o guarda-chuva no vagão do trem. Estava aguardando não sabe o que, para iniciar a corrida de uns 200 metros até o local onde seu carro está estacionado, quando um senhor grisalho, de uns 70 anos, segura seu braço embaraçosamente e lhe fala com uma dicção perfeita e expressando-se de forma absolutamente clara e pausada:

  Daqui a exatamente duas semanas, numa mesma sexta-feira, viaje de carro para Nova Friburgo e vá até Murí, ao local da entrada da estrada de terra que leva até o lugar onde você foi mais feliz na sua vida. Você sabe onde fica. Não falte, não haverá outra chance. Esteja lá no horário que você sabe qual será.

 O Senhor acabou de falar e desceu para a estação do metrô, passando pela roleta e desaparecendo entre a multidão no horário de maior movimento.

    Flávio demorou alguns segundos tentando entender o que fora aquilo. Olhou para fora e percebeu que a chuva dera uma arrefecida e resolveu correr para seu carro.

Entrou, ajeitou-se no banco, ligou o carro e só então começou a perceber o quanto aquele estranho evento o tinha afetado. Sentiu-se muito estranho. Não havia dúvidas sobre nada do que ocorreu naquele encontro surreal. Para organizar os pensamentos, refaz passo a passo os momentos, desde que desceu do vagão do trem e chegou à marquise na saída da estação. Lembrou-se que aquele Senhor não estava dentro da estação quando o abordou, estava vindo de fora no sentido de quem vai entrar no local.

Fato número dois; ele jamais havia visto aquele homem na vida. O homem também não falou o nome dele.

Teria aquele Senhor o confundido com alguém?

O problema é o que aquele estranho falou.

O trajeto até em casa, foi feito pela solitária e deserta praia da reserva biológica, entre a Barra da Tijuca e o Recreio dos Bandeirantes.

Quanto mais pensava no que aquele velho havia falado, mais fazia sentido. Pensou que aquele evento, um tanto sombrio, logo sairia de sua cabeça e o assunto estaria encerrado.

Nos dias seguintes, aquele encontro não saiu de seus pensamentos e a cada dia ele ia se lembrando de mais um evento específico que remontava aqueles lugares em volta de Friburgo. Até que se lembrou que o velho havia falado especificamente a palavra Murí...

Gelou, por que não havia feito logo a ligação?

A palavra Murí dava significado a tudo que aquele senhor havia falado. É impressionante até onde uma memória emocional profunda é capaz de nos remeter...

         Negou-se o quanto conseguiu a fechar aqueles elos que se encaixavam perfeitamente. Mas, não havia a menor chance de alguém, além dele próprio saber sobre aquele passado. Não que fosse segredo, era apenas algo muito pessoal e íntimo perdido no tempo e que ele nunca revelara a ninguém.

Aos 67 anos, não se tem dúvidas de quando se foi feliz.

 Ele não tinha, haviam sido muitas as ocasiões, temporadas longas, outras mais curtas, mas a felicidade sempre dava o ar e o enchia com suas graças.

Mas, há algum tempo havia perdido a paixão pela paixão. Preferia o amor pelo amor e, nessa mudança, optara por não aceitar prêmios de consolação e, também, não se prestar a sê-lo.  Por isso, sentia-se muito bem vivendo sozinho.

Os dias seguintes foram de lembranças, todas cada vez mais convergentes e direcionadas pelo que o estranho velho anunciou.

Laura voltava, diariamente, aos seus pensamentos, a partir do momento em que ele aventou a possibilidade de cumprir a estranha missão. Encontrá-la exatamente naquele lugar era algo absolutamente improvável.

Mas, o que ele deveria encontrar naquele lugar?

Já o identificou como a entrada da estrada de terra que leva ao local onde ele e Laura tiveram uma casa de campo, por alguns anos. Segundo o velho, ele deveria ir até lá e ficar esperando.

Esperando o quê?

Laura, com certeza, não seria. Ela estava casada e feliz. Há mais de vinte anos não tinha notícia alguma dela. E o que adiantaria encontrá-la, no meio da noite, naquele local ermo e deserto?

Que coisa mais louca... sem sentido...e absurda.

Ele se sentia mal toda vez que chegava nessa parte daquele pensamento cada vez mais obsessivo e ridículo. Na idade dele, muitos homens já começam a apresentar algum grau de debilidade senil.

Quem era aquele velho maluco que o deixou tão perturbado? Em verdade, se deu conta que o encontro no metrô ocorreu entre dois velhos, ou seja, a probabilidade de um dos dois estar gagá aumentava muito...

A verdade é que não precisaria de nada daquilo para aumentar a confusão mental em que viveu nos últimos anos. As consequências da pandemia da Covid-dezenove só não foram mais graves e profundas porque ele ainda estava vivo. Mas, não tinha certeza se isso havia sido um bem ou um mal. A vida não o atraía o suficiente para esperar ou desejar qualquer coisa dela.


Entendia perfeitamente como Nietzsche deve ter se sentido após anos mergulhando nas profundezas da alma humana.

Entretanto, discordava do alemão, o nada era plenamente suportável após o que ele já havia experimentado. Na verdade, havia minutos tão insuportáveis que, o simples fato de não haver dor física ou mental, já lhe gerava prazer. Não é agradável se dar conta de que o nada é o melhor estado em que podemos nos encontrar. E, o seu nada significava, também, sem ninguém.

Impressiona, como um ser humano é capaz de ir reduzindo suas necessidades de sobrevivência a ponto de precisar de muito pouco e de ninguém mais.

Mas, esse esvaziamento externo cria um correspondente vazio interno. As coisas vão perdendo o valor, a importância e o sentido. Pouco a pouco nada, nem ninguém, faz falta. As profundezas humanas são traiçoeiras e solitárias, quem as frequenta com assiduidade perde o contato com o mundo que vive na superfície.

Não tinha mais dúvida alguma de que iria subir a serra até o local onde aquele senhor lhe disse que deveria estar.

Finalmente, A NOITE tão esperada chegou.

Saiu do elevador direto na garagem, escura e úmida como sempre.

Entrou no carro, pareou o smartphone, clicou na playlist especial que havia preparado para essa viagem com as mesmas músicas que ouvia quando ele e Laura subiam a serra.

Começava ali sua grande viagem, com as mesmas músicas de 30 anos atrás;

Nova Friburgo tem um grande valor sentimental para ele. Além das melhores lembranças, sempre teve uma simpatia gratuita por aquela cidade e suas redondezas. Murí, Lumiar e São Pedro da Serra são cidadezinhas lindas, pacatas e românticas. O céu de inverno e das frias manhãs de sol esbranquiçado é de um azul forte, definitivo.


 A ele, fala à alma.


Tinha consciência de que se alguém soubesse o verdadeiro motivo da viagem naquele dia e naquela hora, duvidariam de sua sanidade. Ele próprio vinha duvidando seriamente desde que encontrou aquele senhor na saída da estação do metrô, há duas semanas. Às vezes, se perguntava se aquele encontro teria realmente acontecido.

Quando entrou na ponte Rio-Niterói, o fluxo dos carros já não sofria reflexo algum do trânsito das sextas-feiras e corre livre como nas viagens com Laura. O banco do carona é dela, naquele momento ele percebe que nunca deixou de ser.

Não consegue descrever o que está sentindo. Tantos anos passados e a sensação do carro correndo na ponte é improvavelmente agradável... como pôde viver os últimos anos se arrastando na vida...como é bom sentir alguma coisa, como é bom lembrar de Laura. Quase consegue conferir, de novo, algum sentido a palavra felicidade. Naquele momento pôde, ao menos, imaginar.

Como é gostoso subir a serra à noite, com esse céu completamente iluminado pela lua cheia. É mágico.

Para ele não importava mais o que haveria no fim daquela viagem, o trajeto em si já lhe tirara todo o torpor mórbido que acompanhava seus dias.

Mas, alguma coisa muito estranha ocorreu e ainda estava acontecendo até aquela noite. Sente que a cada curva suas energias e pensamentos se excitam progressivamente e de uma maneira inexplicável. Ele sente a adrenalina circulando por todo o corpo. Teve medo para onde aquela estrada o estaria levando. Para onde sua loucura o levaria naquela noite?

A depressão, a infelicidade profunda e a desesperança poderiam ter fabricado aquele velho na estação do metrô?

Poderiam.

Afinal, o que ele lhe disse não faria sentido para mais ninguém a não ser a ele mesmo. O que aumentava a chance de ser produto de sua própria mente. Ele era teimoso e já que chegou até ali, iria até o fim. E, se fosse loucura, pelo menos não haveria ninguém para testemunhar seu surto.

Quando ultrapassou o posto da polícia rodoviária, no alto da serra, ele estava quase todo encoberto pela forte neblina sempre presente naquele horário. Às duas horas da manhã o local está completamente deserto.

Pouco depois de uma grande curva à esquerda ele vislumbra a entrada de terra no mesmo sentido, pouco antes da entrada para Lumiar. É ali.

Ele para no largo onde a estrada de terra que leva até a Casa Azul começa.

Desliga o carro e sente seu coração acelerar ainda mais. Não tem mais idade para suportar aquele ritmo cardíaco por muito tempo. Salta do carro buscando um pouco mais de ar, as pernas estão formigando depois da viagem.

O local está completamente deserto, como era de se esperar, ali não há nada. Volta para o carro e deita o banco, tentando compassar a respiração e controlar aquelas descargas de adrenalina.

O suor é tão intenso que encharca sua camisa, suas extremidades estão frias e azuladas. Uma dor aguda percorre todo seu braço esquerdo, a dor no ombro esquerdo aumenta e paralisa seu braço.

Faz um esforço e consegue alcançar os dois comprimidos que restam na cartela. Toma-os e se deita no banco reclinado. Após um pico de dor aguda no ombro, que reflete intensamente no peito, sente um relaxamento profundo e apaga.

De repente, acorda assustado, ainda no mesmo local, e vê um vulto saindo da pequena estrada caminhando em sua direção.

É Laura sorrindo, de braços abertos para recebê-lo.

Edmir Saint-Clair

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