Finalmente ele saiu.
Clara não dormira nem um segundo durante a noite, não mexeu sequer um músculo para que Gustavo não percebesse. Ficou imóvel, até que ouviu a porta da rua bater, já de manhã. Ele, finalmente, saiu.
Sentiu-se aliviada e tudo o que pensava era sair o mais rapidamente possível dali. Foi até o banheiro e, em frente ao espelho, chorou quando viu seu reflexo. Todo o lado esquerdo de seu rosto estava inchado e com um hematoma que quase não a permitia abrir o olho. A primeira coisa em que pensou foi no que falaria para seu filho quando chegasse em casa. O horror diante da própria imagem a deformava ainda mais. Sentou-se no vaso sanitário e chorou, compulsivamente, até cansar. O salgado das lágrimas ardeu-lhe nos olhos e lábios. Tomou um banho, foi até a cozinha, pegou gelo e aplicou no rosto. Sentada no sofá da sala, começou a tentar concatenar seus pensamentos.
Não conseguia parar de pensar no filho, sentia pena dele por ter uma mãe que se deixou chegar aquele ponto. O choro voltou. Mas, ela precisava pensar enquanto o filho ainda estaria no colégio, o que lhe dava algumas horas.
Pensou na Lei Maria da Penha e sentiu, a princípio, haver uma saída, entretanto, sobreveio-lhe o pavor das repercussões. Se denunciasse não haveria mais como esconder aquilo de sua mãe. Não era novidade, e ela havia prometido que da próxima vez denunciaria o filho da puta. Tirou a opção da denúncia da cabeça, naquele momento, não tinha estrutura psicológica para suportar o que sobreviria.
Clara ainda tinha três longas
horas para pensar no que faria até o horário de saída do colégio do filho, e
ficou mais calma.
Com certeza Gustavo não a encontraria mais ali, aquela era a última vez que ele a havia agredido.
Pensou de novo no filho. Andou pela casa procurando, mas, além de um biquíni e um despertador, nada mais ali ela queria levar.
Ligou para a mãe e inventou uma viagem a negócios para São Paulo e que ficaria o resto da semana por lá, e pediu para que a avó pegasse o neto na saída do colégio. Era comum ele passar dias com os avós, eles moravam a 1 quarteirão de sua casa, não haveria problema. Ela só voltaria quando seu rosto estivesse desinchado. Seu filho não a veria naquele estado, esta resolução lhe provocou um grande alívio. Nada era mais importante do que poupar seu filho. A Lei Maria da Penha podia esperar até que ela pensasse um pouco melhor.
A alegria de não causar um trauma no filho deu-lhe forças para continuar a fuga. Ela precisava arrumar um jeito de ficar sozinha.
Júlia, era sempre a primeira quando precisava de uma amiga. Quase desistiu quando lembrou que, necessariamente, teria de encontrar-se com ela, que a veria machucada.
Teve muita vergonha.
Mas afinal, eram amigas. Tomou coragem e ligou para o escritório. A amiga atendeu-a com a mesma alegria de sempre. Clara mal conseguia falar segurando o choro. Júlia, prontamente, colocou-se, e a sua casa em São Pedro da Serra, à disposição da amiga. Não perguntou nada, não precisava, nada era novidade. Clara ligou para a confecção e deixou instruções para que sua gerente, Carla, cuidasse de tudo. Ela tinha sorte pelo menos com sócias e gerentes.
Pegou a bolsa e mais uma sacola com poucas coisas e saiu sem olhar para trás. Trancou a porta e jogou a chave por debaixo, disposta a nunca mais voltar.
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São Pedro da Serra fica a 6 Km de Lumiar. A estrada toda é deslumbrante. Principalmente, o trecho de acesso a Lumiar. Às 5 horas da tarde o clima é sempre ameno na serra de Nova Friburgo, bem diferente do calorão do Rio de Janeiro. Clara sente pena de estar chegando, queria viajar mais, faz muito bem à sua alma ver a estrada ficando para trás, a sensação de estar indo cada vez mais para longe de tudo. Ver o mundo ficando para trás, pelo espelho retrovisor.
Quando chegou a Lumiar quase parou num bar para comprar mais cigarros e tomar um refrigerante, mas, lembrou-se do rosto inchado e teve vergonha. Seguiu direto para São Pedro da Serra. Chegou em casa, cozinhou um macarrão, fez o prato e chorou quando, na primeira garfada, o sal do queijo parmesão fez arder o corte no lábio. Chorou mais um pouco e depois dormiu, sem jantar.
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Clara acordou cedo, preparou o café e foi tomá-lo na varanda, sem pressa, sentada na rede. A varanda da casa de Júlia era voltada para a montanha e uma pequena estrada de terra passava bem em frente.
Deixou-se hipnotizar pela calma e tranquilidade daquela clara manhã. Ficou olhando fixamente por algum tempo, hipnotizada pela beleza campestre. A brisa soprava fraca e gostosa, e os sons da manhã soavam perfeitos. Fechou os olhos para ouvi-los mais atentamente. Com os olhos fechados reproduziu a paisagem em sua mente. Os sons dos pássaros e da manhã, ela os sentia mais intensamente com os olhos fechados e, ao mesmo tempo, reproduziu, em sua mente, a paisagem que acabara de ver para, em seguida, com os olhos abertos, checar a semelhança com a imagem real.
A primeira coisa que notou, é que na paisagem com os olhos abertos as cores da manhã tinham mais brilho, mais vida. Fechou novamente os olhos, e a paisagem em sua mente continuava a mesma, sem brilho.
Enquanto seus olhos estavam fechados, percebeu uma presença física ao seu lado e ouviu com absoluta clareza:
- O brilho das duas deve ser igual.
Assustou-se quando abriu os olhos e não havia ninguém.
Clara ainda não sabia que podia ser eterna.
A essência do todo tocara-lhe a face, mas ela, ainda, não era capaz de percebê-lo.
Era o primeiro contato que estava tendo com algo muito maior do que poderia compreender naquele momento.
Haveria outros sinais.
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