ORIENTADOR LITERÁRIO

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NO ÚLTIMO MOMENTO


Ele acordou com o barulho de vozes na porta de seu quarto. Morava com os pais, apesar da idade e de não precisar economicamente. Mas, ao contrário do que isso poderia parecer, nunca se dera bem com seu pai. Uma situação bastante estranha.

Olhou o celular para ver às horas, 05h00min da manhã. Há anos seus pais não acordavam a essa hora. Só faziam isso quando iam viajar ou fazer exames médicos. Era janeiro, pouco depois do ano novo, tanto uma coisa quanto a outra eram plenamente viáveis. Voltou a dormir.

Acordou, novamente, às 11 da manhã. Seu trabalho lhe permitia escolher seus horários. Havia um incomodo no ar, algo estranho.

Ainda tomando café, foi até o quarto dos pais. Nada indicava que tivessem viajado. Ao contrário, o desarrumado incomum do quarto não parecia normal.  Seria pouco provável que seu pai viajasse deixando portas de armário abertas e a  cama do casal desfeita. Estranho, mas poderiam estar atrasados e não tiveram opção a não ser deixar tudo do jeito que estava.

A noite chegou e alguma coisa continuava estranha. Pouco depois das 10h da noite, recebeu um telefonema da sobrinha avisando que o avô estava no hospital, internado no CTI. Ficaria lá por alguns dias e não tinha previsão de alta.

A sobrinha lhe contou que avô/pai tivera um acúmulo bastante severo de liquido na cavidade torácica, o que provocou uma violenta compressão no coração e pulmões, pressionando-lhes perigosamente.

− O Senhor deve estar se sentindo muito mal, uma sensação de sufocamento. Seu coração está tão pressionado que mal consegue bater. Vamos resolver isso, fique calmo. Disse a médica visivelmente preocupada. Exclamou a primeira médica que o atendeu.

O pai foi submetido aos cuidados emergenciais necessários, lhe drenaram o líquido descomprimindo os órgãos e aliviando o estado geral. Ficaria no CTI,  visitas somente alguns dias depois.

Os irmãos já haviam chegado de suas cidades atuais e estavam todos aguardando na ante-sala de entrada para os leitos no amplo salão do  centro de tratamento intensivo, onde ficavam os boxes e seus respectivos pacientes. Um Centro de Terapia Intensiva de grande porte. O médico veio conversar com a família, a mãe ficou lá dentro, ao lado do pai, no leito.

 Nesses dias em que o pai está no CTI, a mãe ficou no quarto normal do hospital que está reservado para ele. O evento havia sido gravíssimo e poderia tê-lo morto não fosse pela condição excepcional de saúde que sempre gozara. Se seu coração não fosse tão forte, não teria resistido. Sua saúde sempre fora invejável e motivo de orgulho próprio, mesmo aos 79 anos.

Agora, ali naquele CTI, parecia totalmente abatido. Ele nunca vira o pai daquele jeito, tão fraco e frágil. Pelo lado de fora da janela de vidro que dá acesso aos leitos, ele pode vê-lo sem que o pai pudesse vê-lo de volta. Sentiu uma compaixão intensa, profunda e surpreendente. Também sentiu pena.

Não trocavam palavra há 20 anos. Mas, não se entendiam desde muito antes, do início da adolescência. Na verdade, nunca se deram bem. Ele nem se lembra mais desde quando. Uma relação conflituosa e problemática, que fora piorando,  paulatinamente, conforme o tempo foi passando.

Uma relação pai e filho presume boas experiências juntos, é uma relação que marca e determina profundamente nossos destinos. Nesse caso, essa relação nunca aconteceu. Desde muito cedo, um muro foi se erguendo, tijolo a tijolo, até  parecer intransponível. Uma sucessão de erros mútuos que determinaram o rumo de uma relação que, só começou a parar de piorar, a partir do momento em que ele deixou de dirigir a palavra e de sequer fazer menção de ter ouvido quando o pai se dirigia a ele.

Com o tempo, o pai também não se dirigia mais a ele. Sua mãe era a porta-voz dos dois. Aquilo fora necessário para interromper aquela tensão cada vez mais insuportável. Com a aquiescência da mãe, a partir desse silêncio, a princípio unilateral, hoje reinante, a tensão se dissipara.

 O silêncio e a ausência total de interação entre os dois trouxe uma paz que jamais haviam experimentado na convivência.

Não havia discórdia, não havia cobranças. Não havia nada além das presenças físicas quando transitavam em silêncio pelo longo corredor, eventualmente, na sala ou na cozinha. Silenciosos e ignorando a presença do outro. Há tempos não se respeitavam tanto. Nunca a relação dos dois fora tão pacífica e tranqüila.

A sensação de paz o levou a evitar cada vez mais cruzar com o pai. O amplo apartamento facilitava a missão.  Só saía do quarto pela manhã para o trabalho e voltava pelas dez da noite entrando direto para o quarto. A partir desse horário, era ainda mais tranquilo, o pai era desses que dormem e acordam cedo. Ele, exatamente o oposto. Os horários se encaixavam perfeitamente. Não era raro passarem dias sem que se vissem.

O mais estranho. É que ele voltara a morar na casa dos pais após a última separação, a princípio por algum tempo apenas, já aos quarenta anos. Acontece que o tempo foi passando e prolongou-se por 10 anos até desaguar naquele momento.

Ele sempre se sentira com motivos de sobra para não falar com o pai há tanto tempo. Sua mãe concordava com a atitude, por ela, ele já deveria ter parado de falar até antes. Era estranho que não tivesse saído da casa há tempos. Tinha condições financeiras para isso, não havia porque sustentar aquela situação esdrúxula. 

O fato é que, desde aquele dia até hoje, havia se passado 20 anos.  Imediatamente, ele deteve aquele raciocínio e deixou-se levar apenas pela intuição e pela emoção. Estava confuso. A proximidade da morte de uma pessoa que sempre lhe parecera imortal era muito complicada. Ele não sabia como reagir. Não pensou em perdão ou qualquer coisa parecida. Tinha muitos problemas com essa palavra. Não pensou. Fez.

Em alguns dias, o pai havia ido para um quarto espaçoso e confortável de um bom hospital particular e todos os filhos, inclusive os que moravam fora do Rio, estavam na casa da família onde todos cresceram juntos. O clima era de muita apreensão, mas com muito carinho entre os irmãos que se apoiavam mutuamente.  

Pela manhã, chegou o resultado da biópsia: câncer no pulmão, estágio III de IV.

Quando se viu sozinho, pela primeira vez, desde que soube do resultado, surpreendeu-se com a própria serenidade. Apesar de chocado, impactado pelo inesperado, estava estranhamente sereno. Muito, pelo imponderável da situação. O pai sempre fora forte levava uma vida confortável, sem preocupações e sua única atividade diária obrigatória era jogar vôlei com os amigos na praia. Fazia check-ups periódicos com uma regularidade elogiável.

Ele não tinha dúvidas de que os pais se divertiam quando saíam para fazer exames. Estavam sempre repetindo o programa.

O pai tinha o mesmo bronzeado em qualquer época do ano. Aposentado e com uma vida tranqüila e bem amparada, fruto de seu trabalho, se tornara uma pessoa que mudara o comportamento nos últimos anos. Tornara-se um homem mais sociável, bem humorado e com um círculo de amizades que lhe proporcionava uma vida social com atividades freqüentes e tão intensa quando ele desejasse, já que dos convites que recebia não aceitava grande parte. 

Uma pessoa querida pelos amigos, que promovia churrascos e comemorações. O carinho cada vez mais explícito, dos amigos, durante todo tempo em que a doença evoluía foi comovente. As manifestações e presenças dos amigos e vizinhos só não foram mais freqüentes pela absoluta incapacidade do pai em lidar com os próprios sentimentos. 

Esses fatos, que ele passou a testemunhar, mostravam que o pai era uma pessoa que conquistara a amizade, o carinho e o respeito de muita gente ao seu redor.

Então porque o pai não fora assim com ele?

Estava longe de ser um bom pai. Toda a vida lhe veio à cabeça. Decididamente, sentimento de culpa ele não tinha nenhum. Tinha motivos. Sérios. Decidiu não tentar mais entender os motivos que o estavam levando a agir daquela forma inesperada e surpreendente para ele mesmo. Um carinho que ele não sabia de onde estava brotando. Algo diferente e desconhecido assumira o controle de suas ações.

Passou a se interessar, acompanhar, ajudar e incentivar o pai diariamente, dedicando um carinho que ele não acreditava que ainda pudesse existir naquela relação. O pai lhe devolvia na mesma moeda, do seu jeito. Evitando a emoção. Mas, mostrando amor e carinho como nunca demonstrara.

E foi assim pelos 10 meses seguintes, até aquela noite no quarto do hospital, no qual ele havia sido internado pela última vez, depois de dezenas de indas e vindas.

Estavam todos os filhos e a mãe. Como faziam todos os dias,  desde essa última internação. Antes dos filhos irem embora à noite, se reuniam em volta da cama do pai numa ordem que aconteceu espontaneamente e que se repetia por esses meses: a mãe de mãos dadas com a mão direita do pai deitado, um irmão com a mão postada sobre um tornozelo e o outro irmão no outro. A irmã fechava o círculo segurando a mão esquerda, e dessa forma o envolviam num círculo para rezar o pai nosso que ele gostava.

Nessa noite, a doença avançava para seu desfecho e o pai já não falava. Ele estava ao lado perto da mão esquerda. O pai segurou-lhe a mão, olhou para ele e a apertou. Ele entendeu que o pai queria rezar e chamou os outros. Chamou também a irmã para que ocupasse seu lugar na mão esquerda. 

Nesse momento, o pai levantou levemente o braço e segurou-lhe a mão, apertando-a tão forte quanto pode, deixando claro que queria que ele ficasse ali, de mãos dadas, naquela que seria a sua última reza.

Rezaram juntos, e durante todo aquele intenso momento o pai não afrouxou aquele aperto na mão nem por um segundo.

Ele entendeu com toda a clareza e profundidade aquele último gesto e sentiu-se em paz quando, oito horas depois, presenciou o pai expirar pela última vez.

Ele finalmente compreendeu porque não se mudara daquela casa e, também, porque seu pai nunca o mandara embora: apesar de não terem nenhuma interação, estarem sob o mesmo teto foi a única maneira, intuitiva, que pai e filho encontraram para não se perderem para sempre.

O choro foi triste, mas foi leve.

Houve beleza no final daquela história.

Finalmente, pai e filho estavam em paz.

- Edmir Saint-Clair

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