O último ano havia sido difícil. Aos 32 anos, divorciado, uma filha de nove anos e um emprego que lhe permitia apenas o básico, havia desistido de seus sonhos. Sua vida estava parada, havia tempo. De tudo, somente a filha valera a pena. Enquanto pensava, caminhando pela av. Afrânio de Mello Franco em direção à Lagoa, naquela quase 1h da madrugada de uma terça-feira chuvosa, tudo o que sentia era pena de si mesmo.
Caminhava vagarosamente, afinal não estava indo a
lugar algum, aliás, nunca ia. A insônia, que há tempos o acompanhava, com
certeza o faria chegar atrasado ao trabalho na manhã seguinte e isso lhe
renderia mais uma bronca do chefe, e o círculo vicioso mais uma vez se autoalimentaria,
tirando-lhe os sonos futuros.
Tudo o que desejava, era poder escrever suas estórias. Mas, como e por onde começar?
Tudo o que ele havia escrito até agora,
não passava de textos baratos, cheios de clichês, que quando muito
impressionavam alguma moça mais desavisada. No fundo, ele acreditava que
poderia produzir algo bom, mas, já não tinha certeza. Sentia-se um velho em fim
de carreira nenhuma. Pensou na filha e um nó subiu-lhe a garganta, soluçou, sem
chorar, um suspiro profundo, como se seu corpo expulsasse o excesso de tristeza
que já não comportava. Ele vinha caminhando e virou na Rua Humberto de Campos e
passou pela porta da 14ª Delegacia de Polícia no piloto automático. A rua
estava tão deserta quanto seu espírito. Não via saída.
A solidão soava como paz. Para onde seu pensamento
fosse lá estava a angústia que aumentava a ansiedade que aumentava a velocidade
com que sua mente lhe aterrorizava com pensamentos fatalistas. Sentia raiva,
ansiedade, angústia e muita pena de si mesmo. Não tinha para onde correr nem a
quem recorrer. A rua deserta estava em perfeita sintonia e a chuva cessara.
Apenas pingos caiam das folhas das árvores encharcadas. Não estava frio, nem
fazia calor. Não estava nada.
Acendeu o baseado e entrou na Rua José Linhares. O
entorpecimento que a maconha lhe causava era um alívio grande, a sensação do
primeiro trago nublava os pensamentos. Os tragos seguintes realçaram os
barulhos da chuva, a iluminação amarelada e parcialmente coberta pelas árvores
encorpadas. O prédio que ocupa a esquina entre as duas ruas, Humberto de Campos
com José Linhares, tem um formato em L, e uma marquise em frente à entrada da
porta de madeira da garagem, uma boa proteção contra a chuva. E, é escuro. Um
canto na rua. Fumando o baseado ali, no canto e encolhido, estava se sentido o
melhor que poderia naquele momento. Percebeu um vulto chegando quando já
bastante próximo e se assustou. Era o porteiro que parou, fitando-o sem falar.
Ele se sentiu intimidado e saiu da entrada da garagem.
Sentir-se intimidado não era novidade. Seus pais não
o deixavam esquecer esse sentimento. Era um exilado, um estorvo que ocupava um
quarto sempre de portas fechadas. A sensação era de constante ameaça. Velada,
obscura e onipresente. Uma prisão sem grades, uma tortura sem ferros. Pensou
que a única coisa em comum entre aquelas três pessoas, que poderiam ser uma
família, era a crença de que ele não era nada. E nunca seria. Ele deu errado.
Sua vida era um erro.
Caminhou até a metade do quarteirão e parou em
frente a um prédio em construção, onde estava mais escuro e não tinha porteiro,
encostou-se num carro estacionado ao meio fio.
Foi impossível não notar o carro preto reluzente, de
linhas futuristas, os vidros completamente negros bloqueavam completamente a
visão de seu interior. Era o tipo de carro que gostaria de ter, se pudesse.
Mas não
podia. Após o divórcio, havia voltado a morar com os pais e a probabilidade era
de que jamais sairia de lá.
E, mais uma vez, pensou em algo que há tempos lhe
seduzia: a morte. Desta vez, a ideia passou a ser plano imediato. Havia acabado
de comprar uma caixa de cada um de seus ansiolíticos e remédios para dormir, na
única farmácia que lhe vendia sem receita, com ágio, é claro. Geralmente,
lembrou, esse é um dia razoável do mês. Sentia-se um pouco menos inseguro. Ter seus
medicamentos à mão é o que havia de mais próximo de um estado menos tempestuoso.
Sua segurança e consolo eram as pílulas. Lembrou-se do outro lado da moeda, dos
dias em que os remédios estavam no fim, e o coquetel de sentimentos e sensações
de angústia, ansiedade, insegurança e medo aumentavam, pela simples
possibilidade de ficar sem os medicamentos. Não ter as receitas reduzia sua
possibilidade de compra a uma única farmácia. Sem eles era impossível dormir,
impossível viver. A simples lembrança daquela sensação causou-lhe um pico de
angústia que lhe rasgou o peito.
Seus olhos choraram o choro de sempre. A rua estava
escura como sua alma.
Aquela angústia intransponível lhe remete a um
pensamento que vinha amadurecendo nas noites insones.
− Trinta comprimidos de ansiolítico mais trinta
comprimidos de soníferos vão me livrar de tudo isso... Pensou. Dormir, a coisa
que ele mais gostava e mais fazia. E assim, tudo estaria resolvido.
Enquanto
tirava um trago maior, sentiu a porta do carro em que estava encostado, abrir.
Sua reação automática foi esconder o baseado. Ele vivia escondendo tudo de
todos.
Um homem bem-vestido, com um curioso chapéu preto
que lhe cobria o rosto, aproximou-se. O som de sua voz pareceu-lhe familiar
quando o homem lhe pediu para fumar de seu baseado.
A princípio, ele teve receio, mas algo lhe soava
confiável naquele homem. Manteve a cabeça abaixada para esconder as lágrimas. O
estranho pegou o baseado e, enquanto prendia a fumaça, dirigiu-se a ele, sem
mostrar o rosto.
- “Sei exatamente o que você está sentindo agora...”
Ele levantou a cabeça e tentou ver o rosto do homem.
O estranho evitou o olhar e continuou.
- “Não se preocupe, você não irá fazer o que está
pensando, eu lhe garanto.”
Puxou mais uma vez o cigarro fazendo com que a brasa
reluzisse e uma cortina de fumaça tornasse ainda mais difícil a visão de seu
rosto.
As palavras daquele homem o estavam assustando,
afinal como poderia ele saber o que estava pensando. Não poderia, pensou, ele
deveria estar apenas se utilizando de clichês, pois não seria difícil alguém
perceber sua angústia. O estranho continuou.
− “Não tenha receio, eu sei que tudo isso parece e é
muito estranho. Mas, esse momento vai mudar profundamente a sua vida, para
melhor. O tempo se encarregará de lhe confirmar... apenas acredite nisso...”
E continuou a falar-lhe, como se soubesse de cada
pensamento que lhe ocorrera naqueles momentos que antecederam aquele inusitado
encontro.
O estranho continuou falando calma e pausadamente,
enquanto as lágrimas escorriam por seu rosto, incontroláveis. Ele mantinha a
cabeça baixa tentando esconder a profusa emoção. O estranho, de chapéu preto,
facilitava sua tarefa evitando olhar em sua direção, sem parar de falar.
Parecia saber exatamente o que fazia ali.
Foram interrompidos por uma jovem que irrompeu de
algum lugar que ele não percebera.
− “Vamos pai?”
A voz feminina, fez com que ele se virasse a tempo
de ver uma mulher de cabelos bem lisos, longos e castanhos entrando no carro,
não pode ver-lhe o rosto, mas o som daquela voz provocou-lhe uma sensação
desconhecida, ele não soube identificar aquela sensação.
O carro arrancou sem que o homem se despedisse. Não tivera tempo de perguntar-lhe nada. Na verdade não emitira uma palavra sequer. Realmente, pensou, não falei absolutamente nada e ele sabia tudo.
As lágrimas e o choro haviam parado. Ele estava quase catatônico. Estático. Sem reação alguma. Fumou o resto do baseado e, quando acabou, ainda não conseguia ordenar o raciocínio.
Quem seria aquele estranho que pareceu conhecê-lo
tão bem?
O que estaria ele fazendo parado ali, em frente a um
prédio em construção à 1 hora da madrugada, como se o estivesse esperando?
Talvez estivesse esperando a filha, que ele não viu
de onde surgira. Essa lhe pareceu uma boa resposta a essa pergunta, mas e as
outras? Sua cabeça começou a rodar, e por pouco ele não caiu. Após
recuperar-se, a primeira coisa que percebeu foi que a angústia havia
desaparecido. Completamente. A ideia do suicídio começou a perder sentido. De
alguma forma, aquele estranho modificara seu pensamento. Foi para casa
procurando respostas para um monte de perguntas que ele mal conseguia formular
e muito menos responder. Por fim, já em casa adormeceu profundamente, como não
acontecia há anos.
No dia seguinte, passou a manhã toda no trabalho,
fazendo contas e chegou à conclusão que caso fosse demitido, o dinheiro
que receberia por conta de indenizações, salário desemprego e etc., o manteria
por alguns meses e ele teria algum tempo para para tentar alguma coisa que lhe trouxesse real prazer. Sentia-se mais motivado, e aquele estranho tinha tudo a ver com isso.
As palavras daquele homem o haviam influenciado
de uma forma diferente, e ele não conseguia entender por que elas haviam penetrado
tão profundamente em seu espírito.
O Conselheiro Noturno, como passaria a chamá-lo,
demonstrou tanta segurança no que falara que o contagiou de uma forma
definitiva. A cada instante, a partir daquele dia, todas às vezes que batia o
desânimo, pensava no Conselheiro Noturno.
Começou a visitar algumas agências de publicidade,
oferecendo-se como redator, mas a princípio nada parecia promissor o bastante,
por fim conseguiu um estágio, não remunerado, numa pequena agência. A partir
daí, sua vida começou a mudar. Mas, era apenas o começo de uma longa
caminhada.
⸎⸎
Havia-se passado 25 anos e ele, agora, é diretor de
criação de uma prestigiada agência de propaganda, com dois livros publicados e
um terceiro em fase de acabamento. Tem um carro que lhe parece semelhante ao do
Conselheiro Noturno, não igual, afinal, o seu é do ano e o Conselheiro viera há
mais de duas décadas, mas estava satisfeito em ter um que ele achava pelo menos
parecido. De resto, a lembrança daquela noite nunca se desvanecera.
O dia, hoje, é muito especial. Sua filha acabou de
se mudar para o apartamento dado por ele e escolhido por ela. Vão sair juntos
para jantar e comemorar o primeiro dia dela na casa nova. Uma ocasião única,
com a qual sonhara muitas vezes.
Ele chega à agência um pouco mais cedo que seu
costume, não quer se estender nos compromissos do dia. O dia está cinza e
chuvoso, mas lhe parece radiante. Dias de chuva no Rio podem ser muito bonitos
e agradáveis.
Seu celular toca, é sua filha pedindo o carro
emprestado para cumprir algumas tarefas da produção teatral na qual está
trabalhando. Combinam que ela deixará o carro na garagem dele ao final do dia.
Resolve almoçar sozinho perto da agência, em
Ipanema. O tempo está chuvoso e, depois de comer, sente vontade de caminhar até
a Praça N. Senhora da Paz. O local está molhado e, por isso, deserto. Espana as
gotas do banco e senta. Instantaneamente, lhe vem à cabeça o Conselheiro. Uma
estranha sensação lhe invade, não tem ideia do que seja mas, já sentira uma
vez, uma única vez. O Conselheiro Noturno parecia rondá-lo.
Já passava da meia-noite, quando sua filha lhe
telefona dizendo que ficara arrumando algumas coisas e que por isso perdera a
hora. Ela o deixou à vontade para remarcarem, caso achasse que estava muito
tarde, poderiam deixar o jantar para o dia seguinte, mas ele insiste, aquele
era um dia único na vida dos dois, o primeiro em que ela era dona da sua
própria casa. E reconfirmaram o compromisso, ele iria pegá-la em casa.
Ele para em frente ao prédio da filha e fica no carro, esperando que até que ela desça.
De repente, sente a parte traseira do carro abaixar, alguém se apoiou no veículo. Sente um cheiro de maconha e um arrepio intenso percorre sua espinha, irradiando-se por todo o corpo.
Só então ele
percebe que está no mesmo lugar onde estava há exatos 25 anos. Olha para trás e
vê, no banco traseiro, um chapéu preto que sua filha havia esquecido quando
saíra à tarde com o carro.
Naquele momento ele soube quem era o Conselheiro Noturno e o que tinha que fazer.
Abriu a porta do carro, pegou o chapéu e foi cumprir seu destino.
- Edmir Saint-Clair
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