Sábado
era o dia mais animado da nossa semana. Eu e meu irmão acordávamos ainda mais
cedo que nos outros dias. Eu tinha dez anos e ele oito.
Chegávamos ao clube logo depois que abria e em menos de quinze minutos todos os amigos também já tinham chegado. Éramos sócios e amigos de todos os funcionários da AABB da Lagoa, que nos conheciam pelo nome. Nosso dia inteiro era para jogar futebol, tênis, nadar na piscina e, em algum momento, almoçar juntos, mais de 10 moleques cheios de energia e ideias de jerico, fazendo muita bagunça no restaurante do clube. Sem pais nem responsáveis para olhar nossas irresponsabilidades. Resumindo, liberdade para fazer o que quiséssemos o dia inteiro até as 10 da noite, quando os pais começavam a chegar para nos buscar.
Voltávamos sempre dormindo no banco de trás do carro. Exaustos. Lembro que sempre acordava sendo carregado por meu pai da garagem do prédio até a minha cama.
Com
certeza, nessas noites, o pensamento que me vinha a cabeça antes de adormecer
era o desejo de que o próximo sábado chegasse rápido.
Domingo sempre acordava mais tarde e mais preguiçoso. Esse acordou diferente. Meu irmão me balançou avisando que nossos pais queriam conversar com a gente. Na mesa do café, meu pai nos avisou que assim que acabassem as aulas do semestre nos mudaríamos para Uruguaiana, uma cidade que fica no sul do Rio Grande do Sul.
Foi a primeira vez na vida que senti o tempo passar mais rápido. Eu não queria que o dia de ir embora chegasse.
Num dos primeiros dias de junho minha mãe nos acordou bem cedo, nos arrumamos, tomamos café e descemos para a garagem. Meu pai já estava dentro do carro nos esperando. Foi a primeira vez que me lembro de reparar mais atentamente o lugar onde morava. Exatamente quando estava indo embora. O Leblon, cheio de árvores, e a Lagoa ao amanhecer me eram familiares, mas dali para a frente tudo seria novidade. Meu irmão começou a chorar, ele não sabia porquê. Lembrei dos sábados, do colégio e da praia, e comecei a chorar também.
− Isso é saudade... revelou-nos minha mãe.
Não gostei de sentir isso.
A viagem de carro foi de descobertas e encantamentos. Passamos por três estados que não conhecíamos, até chegar ao Rio Grande do Sul, sem pressa. Meus pais eram bem jovens e sabiam aproveitar uma viagem. Tudo era novo. Os hotéis onde pernoitávamos, os estados, as cidades, as florestas de pinheiros, os campos enormes e o frio!
Meu pai calculou a viagem de forma que na última perna a distância nos permitisse chegar no meio do dia a Uruguaiana.
Meu pai calculava muito bem. Minha primeira viagem foi por 2.000 km de novidades e foi quando percebi que o mundo era muito maior e mais bonito do que eu imaginava. E olha que eu já era bom imaginador. Sentia-me o tempo todo fazendo parte de uma aventura. Minha mãe era excelente explicadora do mundo e, também, do que eu e meu irmão sentíamos. Ela sempre tinha um nome bonito para o que a gente estava sentindo. Durante a viagem minha mãe nos contou um monte de coisas que sentíamos, mas não sabíamos o nome. Ela também previa o futuro e nos disse que ainda tinham muitas coisas legais pela frente.
Depois de almoçarmos, já no centro de Uruguaiana, fomos para a Vila Militar, onde ficava nossa nova casa. Nunca havíamos morado em casa, só em apartamento.
Meu pai parou na entrada da garagem. Quando ele saltou para abrir o portão eu e meu irmão pulamos do carro, excitados com tanta novidade. Fiquei olhando, ainda por fora do muro, àquela casa de dois andares, garagem, quintal grande e duas árvores frondosas e cheias de galhos bons para subir. Antes que entrássemos pelo portão, um cão adulto, tipo Colli, só que maior e mais forte, começou a brincar e entrou junto conosco pela primeira vez na casa. Meus pais nem repararam, ocupados em retirar as malas. Eu e meu irmão fomos para o quintal explorar e brincar com aquele cão dócil, alegre, grande e bonito.
A vila militar ocupava um quarteirão inteiro. As casas rodeavam esse quarteirão e tinham duas entradas, a da frente que dava para a rua e a de trás, que dava direto para a parte interna do quarteirão, onde havia uma enorme área gramada comum a todas as casas. Esse centro era um grande espaço aberto com campo de vôlei, futsal, tênis e o melhor, a maior parte era de grama e árvores. Daquelas que dão para subir até o alto, cheias de galhos e frondosas. Eu, meu irmão e o cão andamos por todos os cantos daquele enorme parque particular, descobrindo um mundo novo, totalmente diferente do Leblon. Até o jeito de falar das pessoas era outro. Ficamos imaginando um monte de coisas para fazer no Campinho. Era assim que os moradores chamavam aquele parque particular.
Começou a anoitecer e a esfriar bastante e voltamos para casa, empolgados com aquele espaço enorme que seria nosso quintal dali para a frente. Nunca tínhamos podido ir tão longe sozinhos. E o cão nos seguindo o tempo todo, já nos sentíamos os donos dele. Brincamos de mudar de direção enquanto andávamos e o cão mudava também. Quando entramos pelo portão de casa, o cão entrou conosco, como se aquilo fosse absolutamente rotineiro. Entramos pela cozinha e fomos até a sala, onde meu pai colocava lenha na lareira.
A casa
tinha lareira!
E meu
pai sabia muito de lareira, apesar de nunca ter tido uma. Meu pai sabia muito
de tudo. Fiquei hipnotizado pelo fogo. Meu pai me olhou sorrindo, ele sabia o
que eu estava sentindo. Os pais sempre sabem. E olhou também para o cão ao meu
lado. Fez um aceno com a cabeça na direção do cão e respondi que não sabia de
quem era. Ele chamou o cão que obedeceu e se derreteu com os afagos dele. Meu
pai também gostava de cães. Combinamos que o cão dormiria fora da casa, dentro
do campinho. Ele achava que o cão deveria ser de alguma outra família dali e
durante a noite voltaria para os seus donos. Eu e meu irmão fomos juntos com
ele deixar o cão do lado de fora do portão.
Naquela noite, quando saí do banho, descobri porque a casa tinha lareira. Tudo parecia como num filme. Até o meio da noite... quando todos acordaram morrendo de frio, os quartos ficavam no segundo andar e a lareira era na sala de baixo. Fomos todos dormir na sala, em frente à lareira e abraçados embaixo dos cobertores. Minha mãe fez meu pai prometer que compraria aquecedores elétricos para todos os cômodos na manhã seguinte. Adorei o frio. Ele nos fez dormir abraçados, todos juntos em frente à lareira.
A manhã seguinte nos ensinou que mais frio que uma noite fria de inverno no sul do Rio Grande do Sul é a manhã que vem depois dessa noite. Acordei já tremendo, embaixo de uns três cobertores e abraçado a minha mãe, enquanto meu pai tentava acender novamente a lareira. Ele tinha calculado mal e o fogo apagara precocemente. Quase congelamos. Mas meu pai sabia reacender lareiras e em pouco tempo voltamos a dormir. Quando acordamos de novo, meu pai já havia saído para comprar aquecedores.
Nunca tinha imaginado que era possível fazer tanto frio. Tínhamos acabado de chegar do Rio de Janeiro e isso tudo era completamente novo.
Antes
de tomarmos café, eu e meu irmão fomos até o portão que dava para o campinho e
lá estava o cão deitado bem em frente. Abri o portão e ele saltou para dentro
do quintal e começou a fazer muita festa. Nunca havíamos tido um cão, muito
menos daquele tamanho, nem caberia no apartamento onde morávamos no Rio.
Tomamos café e fomos direto para o campinho, o cão veio junto. Não saía do
nosso lado para nada. Estávamos apaixonados por ele e ele por nós. Quando
voltamos para o almoço, meu pai já havia posicionado um aquecedor em cada
cômodo e nos perguntou sobre o cão. Contamos a estória. Ele explicou que o cão
deveria pertencer a alguma família da vila ou das redondezas. Novamente quando
anoiteceu fomos deixá-lo do lado de fora da casa. Só que dessa vez do lado que
dava para a rua e não para o campinho. Fora desse lado que ele aparecera. O cão
saiu e sentou-se na porta do lado de fora.
Essa noite dormimos todos bem aquecidos, cada um na sua cama. Como bônus pela noite anterior, eu e meu irmãos fomos dispensados do banho. Antes de dormir ficamos conversando sobre o cão. Estávamos encantados e começamos a imaginar que ele poderia ser nosso. E se ele não tivesse dono?
Quando adormecemos o cão já se chamava Mister.
No dia seguinte, Mister continuava no portão e entrou assim que o abrimos. Meu pai estava tomando café e nos contou que um segurança noturno da vila lhe dissera que o Mister tinha dormido a noite inteira como um sentinela no portão. Isso aumentou ainda mais nossa esperança de que ele fosse mesmo nosso. Quando meu pai nos contou que o vigia também dissera que trabalhava ali há vários anos e que nunca havia visto aquele cão, tive certeza de que ele seria nosso. Da vila militar ou das vizinhanças o vigia garantiu que o cão não era.
Meu pai nos contou isso enquanto brincava com o Mister. Meu pai adorava cães e tinha uma sensibilidade especial no trato com eles que sempre o adoravam também. Meu pai sabia muito de cães.
− Mister é?
... gostei,
disse ele.
E assim o Mister foi oficialmente batizado.
Nos fins de semana seguintes fomos os quatro, eu, meu pai, meu irmão e o Mister, passear pelas ruas próximas. Meu pai nos explicara que se ele fosse de alguma daquelas casas, ou alguém o reconheceria ou ele reconheceria alguém ou alguma das casas.
Ele era um cão bem tratado, grande, forte e adulto. Um belo cão. Um ovelheiro, como eles chamam ali na fronteira gaúcha. Um pastor de ovelhas. Ele tinha os caninos marcados como se tivessem sido serrados na ponta ou algo parecido. Descobrimos que isso acontecia para que não machucassem as ovelhas mais novas, informação dada pelas pessoas com quem meu pai conversara em busca de informação sobre o cão e seus possíveis donos.
Nosso encantamento pelo Mister só aumentava. Ele tinha que ser o nosso cão. Um pastor de ovelhas de verdade. Estava na cara que meu pai também queria.
Ele aceitou depois que eu e meu irmão prometemos que não íamos ficar frustrados se o dono aparecesse de repente. Prometemos sem hesitar um segundo, apesar de nenhum dos dois ter a menor ideia do que significava “frustrados”. Não importava. Depois perguntaríamos para minha mãe.
A partir desse dia, foi oficializada a entrada na família daquele grande companheiro que marcaria para sempre nossas vidas.
- Um belo Cusco!
Segundo
todos que o conheceram.
Descobrimos que lá nos pampas eles chamam cachorro de Cuzco. E Chamam batida de carros de “peixada”. Nunca consegui entender o porquê...
Garoto é guri ou piá.
Em
menos de um mês eu já estava falando Baaah! Tchêeeee! E chamando os guris da
vila para brincar como se fossem velhos amigos.
Crianças
fazem amizades com a mesma facilidade com que distribuem sorrisos.
Foi lá
que comecei a me aproximar das gurias e a me sentir atraído por elas.
Em Uruguaiana, não tinha televisão naquela época. No Rio, Nacional Kid era uma das melhores coisas da minha semana, passava todas as sextas-feiras quando eu voltava do colégio. Mas, não me lembro de ter sentido falta um dia sequer da televisão.
Lá, também aprendi a gostar de chimarrão. Tinha dez anos e, geralmente, criança acha o gosto muito amargo, mas eu gostava. Tinha minha cuia e minha bomba, que é como eles chamam aquela espécie de canudo de metal que eles usam para beber, e gostava de ficar no quintal olhando o Mister e bebendo chimarrão. Nas manhãs frias, ficava na varanda do quarto olhando a paisagem branquinha coberta com a fina camada de gelo da noite geada. Era tudo muito diferente, uma grande aventura, como num filme. Para um menino do Rio de Janeiro, acostumado com o modo de vida de uma cidade cosmopolita, era um mundo totalmente novo. Entre o Leblon e Uruguaiana, eu descobri que o mundo era muito maior do que eu jamais imaginara.
Meu pai servia no Oitavo Regimento de Cavalaria, o que significava que poderíamos montar a cavalo com a regularidade que desejássemos.
Minha estreia
na equitação gaúcha não foi das melhores. A primeira vez que eu e meu irmão
fomos, com o grupo de filhos de oficiais da vila, para montar no quartel, foi
inesquecível e hilário.
O sargento que dava treinamento para a gurizada deu, para mim e meu irmão, os dois cavalos mais mansos do quartel, por precaução, já que era nossa primeira vez em terras da fronteira. Nem preciso dizer que os guris de lá pareciam que tinham nascido em cima de um cavalo. Mas, eu e meu irmão, apesar de ainda tímidos, estávamos acompanhando direitinho. Até que meu cavalo branco, chamado Kibon, começou a pular, empinar e a corcovear, do nada. Estávamos no campo de Pólo do quartel, um espaço enorme e gramado, maior do que um campo de futebol. Consegui me manter em cima do cavalo apesar dos solavancos, e logo ele parou com a intervenção do sargento. Eu não havia caído, mas com o corcovear eu saí da cela e fui parar no pescoço do cavalo. Quando ele parou, calmamente abaixou o pescoço e eu desci escorregando de cara no chão. Sorte que era grama. Saí fisicamente ileso e moralmente arrasado. Pelo menos, consegui conquistar a gargalhada e a amizade de todos ali. Passei a ser conhecido como o Carioca que caiu do Kibon, o cavalo mais manso do Oitavo Regimento de Cavalaria. O Mister estava lá e foi o primeiro a me socorrer no chão com suas lambidas.
O Mister já estava nos esperando na porta de nossa casa desde o momento em que chegamos do Rio e ficaria conosco até o dia em que fomos embora, chorando.
Quando partimos, ele ficou com nosso vizinho de frente, meu amigo, que o amava e era amado por ele.
Pensamos muito antes de decidir deixá-lo em Uruguaiana. Mas, confiná-lo ao espaço de um apartamento tendo ao redor a gigantesca e calorenta cidade do Rio de Janeiro, seria muito egoísmo de nossa parte, seria quase uma maldade. Ele era um cão acostumado a espaços amplos como o das estâncias gaúchas, era um cão ovelheiro.
O Mister nos trouxe, naquele ano inesquecível, muito mais amor e amizade do que qualquer história pode contar.
Nunca soubemos de onde ele surgiu no mesmo dia em que cheguei, na porta da minha casa, para entrar para sempre na minha vida e no meu coração de menino.
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